Por Guilherme Balza
Favelas, cortiços, palafitas, loteamentos clandestinos, ocupações. Mas também fazendas, latifúndios e condomínios de luxo.
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Em São Paulo, um terço da população, ou quatro milhões de pessoas, moram em imóveis irregulares. Foto: Guilherme Balza / CBN |
A história da ocupação das terras urbanas e rurais no Brasil é a história da ocupação irregular. Essa é a regra. Moradia legalizada é exceção. É o que diz o urbanista Kazuo Nakano, professor da Universidade Federal de São Paulo:
"Boa parte de Alphaville [condomínio de luxo na Grande São Paulo] é terra da União. Os condomínios de alto padrão ao redor do Lago Paranoá, em Brasília, uma boa parte deles estão irregulares. Os condomínios fechados de Goiânia são todos irregulares. Quando fizeram a quantificação das terras nos cartórios de imóveis do estado do Pará viram que a quantidade de terras registradas era duas vezes maior que o estado do Pará.
Você tem uma situação de irregularidade da terra que é gigantesca no país. Você tem juízes morando em loteamentos irregulares no estado de São Paulo. Então, a ocupação irregular da terra urbana por parte do movimento de luta por moradia é um pingo."
No período colonial, a terra só poderia ser doada pela Coroa Portuguesa, com critérios rigorosos. Índios e escravos obviamente não tinham direito. Mesmo a maioria dos brancos ficava de fora. Em 1850, veio a lei de terras, que acabou com as doações. A terra teria que ser comprada. De novo, a grande massa, sem dinheiro, estava excluída.
A industrialização e o êxodo rural a partir dos anos 1960 inflaram as cidades. Ao contrário do que aconteceu na Europa, esse processo aconteceu sem investimentos em habitação para atender essa população migrante e sem a noção de bem-estar social.
O sem-terra do campo virou o sem-teto da cidade.
A professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, Ermínia Maricato, diz que quem sempre resolveu o problema da moradia nas cidades brasileiras foi o mercado ilegal ou informal.
Loteamentos clandestinos nos extremos, vendidos por pequenos especuladores, onde as casas eram erguidas pelos próprios moradores. Além, claro, das favelas em encostas de morro, beiras de córregos e outros lugares rejeitados.
"Se você ganha dois salários mínimos você tem que escolher se você come, mora ou se transporta. Historicamente, parte da nossa população, no processo de urbanização, ela é compulsoriamente remetida à ocupação ilegal. Quando se fala, se enche a boca para falar 'aquilo é uma ocupação irregular' e, de repente, quer dizer que aquilo está ligado ao crime organizado, mostra uma profunda ignorância do que acontece hoje com a ocupação do solo no Brasil inteiro", diz a professora.
Em São Paulo, um terço da população, ou quatro milhões de pessoas, moram em imóveis irregulares, ou seja, sem a escritura. Em grandes cidades do Nordeste e da Amazônia o percentual chega a mais de 70%.
O resultado disso é o que alguns urbanistas, como a ex-relatora da ONU para moradia Raquel Rolnik,
chamam de "permanência da transitoriedade" da população pobre. Ou seja, uma massa perambulando no tempo e no espaço atrás de um lugar pra viver.
Da favela pra rua, da rua pra ocupação, da ocupação pra favela.
"Quando nós trabalhamos na Ocupação Douglas Rodrigues, na Vila Maria (Zona Norte de São Paulo), que agora inclusive está ameaçada de remoção, tinha gente que já tinha passado por oito remoções. Oito reintegrações na vida. Então é uma vulnerabilidade permanente. É uma absoluta falta de estabilidade. Porque a moradia não é só quatro paredes e um teto. Especialmente para quem tem uma renda muito baixa ela é basicamente um lugar a partir do qual você estabelece uma rede de proteção e sobrevivência", afirmou Rolnik.
Na segunda reportagem da série "Por um teto, por um fio", vamos falar de um fenômeno muito comum entre os anos 1970 e início dos 1990, responsável por formar bairros inteiros nas grandes cidades: as ocupações espontâneas, que agora voltaram com força após o boom imobiliário seguido pela recessão econômica.
*Com colaboração de Natália Mota
'Boom' imobiliário e recessão fazem ressurgir fenômeno das ocupações espontâneas
No segundo capítulo da série 'Por um teto,
por um fio', a CBN vai contar a história das ocupações espontâneas na
periferia de São Paulo, que se multiplicam a cada dia. O fenômeno era
comum entre os anos 1970 e 1990 e foi responsável pela formação de
muitos bairros das grandes cidades brasileiras.
Por Guilherme Balza*
Cemitério da Vila Nova Cachoeirinha, periferia da Zona Norte de São Paulo.
Ali, em meio a escombros, muito lixo e tumbas violadas, moram dez
famílias sem-teto em barracas de madeira, lona e tecido, cercadas por
mato alto e cheiro de esgoto.
Um cenário desolador.
São usuários de crack, catadores e transexuais que se refugiam de uma sociedade que os rejeita.
"Nós moramos aqui. Dormimos em lugares em que não se poderia dormir.
Cemitérios, covas, barracos improvisados", contou um dos moradores.
Separados por uma mureta de meio metro, estão os que buscam um destino diferente.
Ao lado do cemitério, está surgindo uma imensa comunidade, batizada de
Favela do Boi Malhado, em homenagem a um time de várzea do bairro. A
região virou um imenso canteiro de obras. O vai e vem é constante. O
barulho das pás se mistura com a sempre presente batida de funk.
Há dois anos, moradores da região decidiram ocupar o terreno abandonado.
A notícia correu. Hoje, chega gente de Minas Gerais e até do Nordeste.
Já são 200 famílias vivendo ali. A dona de casa Alessandra Petrelli foi
uma das primeiras a chegar.
"Aqui a gente chama de uma 'ocupação independente'. Cada um arriscou por
si. Cada casa que tinha uma pessoa que pagava aluguel a gente ia
chamando, falando 'vamos subir, vamos tentar, vamos arriscar? Vamos!'. E
subimos com as ferramentas e começamos a limpar. E estamos na luta,
construindo dia após dia", diz um morador.
O que acontece no Boi Malhado não é exceção. Ocupações espontâneas, sem
vinculo com movimentos organizados, surgem aos montes na cidade. Já são
quase 200, que abrigam 40 mil famílias nos extremos da zona sul, na
norte e leste.
São pessoas que já moravam em comunidades irregulares e não conseguiam mais pagar o aluguel, entre R$ 400 e R$ 1.000.
A maioria não tem emprego.
Em muitos casos, como no Jardim Peri Alto, na Serra da Cantareira, as casas são de tábua mesmo.
Dois meses atrás, Marcílio Andrade Júnior foi demitido do trabalho de
auxiliar de limpeza. Trocou o carro velho por um barraco na ocupação,
onde mora com o filho pequeno e a mulher. Foi a solução para quem passou
a viver de bicos.
"Por mês dá pra tirar R$ 800, R$ 900. Já pensou eu pagando aluguel de R$
450? Fora água e luz... Aí não dava para sobreviver com a minha
família, né? Então, eu achei essa solução. Fazer uma troca, de um carro
por um barraco, para dar um teto pra minha família", contou Marcílio.
A Vila Santo Henrique, na Zona Leste, surgiu há nove meses em um terreno
ocioso. Mães solteiras, idosos, deficientes físicos e muitas crianças
estão entre os 1.500 mil moradores. Primeiro, as famílias montam
barracos de madeira e garantem o lote. Aos poucos, substituem por
paredes de alvenaria.
O sonho de um lar interrompe outros sonhos. Felipe Nogueira da Silva, de apenas 20 anos, abriu mão da faculdade:
"Trabalho no Burger King. Em dois horários, às vezes. Dupla jornada. Pra
tentar pegar um dinheiro no final do plantão e poder construir uma
casa, ajudar aqui.
- Então você não dorme?
Não, não durmo.
- E você sabe construir?
A gente vai aprendendo, né? Com o tempo... Eu não sabia, mas olhando é
que se aprende (...) Minha mãe tem depressão, minha avó já é de idade.
Quem cuida mais sou eu. Eu banco tudo. Ia fazer faculdade, mas ou fazia
faculdade ou ajudava em casa.
- Mas não desistiu de fazer faculdade?
Não desisti, não. Marketing empresarial e finanças, também. Sou bom em matemática."
Das mãos e histórias calejadas dessas famílias, a maior cidade do país preenche seus vazios e prossegue sua expansão periférica.
*Com colaboração de Natália Mota
Subterrâneos, beira de avenidas e até kombis: a casa dos brasileiros na pobreza extrema
A terceira reportagem da série 'Por um teto,
por um fio' mostra a realidade de famílias sem-teto que enfrentam as
situações mais extremas em busca de um abrigo. São ambientes perigosos e
insalubres, que expõem os moradores a vários riscos, mas que são a
única alternativa para quem vive na pobreza extrema.
Por Guilherme Balza*
Encontro das marginais Pinheiros e Tietê, os dois corredores mais
movimentados de São Paulo. Duzentos barracos de madeira se aglomeram ao
lado da via, protegidos por uma mureta de meio metro de altura.
O terreno fica sobre um piscinão. Os moradores são carroceiros que
trabalhavam na região. O primeiro chegou em 2014, mas a comunidade
cresceu pra valer de dois anos pra cá.
Cinco moradores já morreram atropelados. Mas ainda há outros riscos:
ratos e cobras aparecem com frequência. Incêndios também são comuns.
Ainda assim, Antonio Carlos Fernandes, que mora ali com a mulher e cinco
filhos, diz que é a melhor casa que ele já teve:
"Nós sempre moramos em comunidade, debaixo de ponte, na praça, na rua...
- Aqui é o melhor lugar que você já morou?
Melhor lugar, não tem outro melhor.
- Por que?
Porque aqui cada um tem seu barraco, seu espaço, né? Não é tudo novinho,
que nem as pessoas têm nas casas, mas dentro de casa eu tenho tudo. Tem
banheiro, chuveiro, televisão, geladeira", disse Antonio Carlos.
Robson Rodrigues da Silva perdeu a casa de alvenaria em uma enchente há
dois anos. Pouco antes foi demitido do emprego de cobrador de ônibus.
Agora, está diante de um dilema: não consegue alugar uma casa porque não
tem trabalho. E não arruma emprego porque não tem casa.
"Já entreguei currículo, bastante currículo. A minha dificuldade é o
comprovante de endereço. Meu menino umas duas vezes já tentou pular o
muro. Eu tenho que ficar 24 horas olhando pra ele não ir para o outro
lado da pista. Porque o muro é muito baixo", contou Robson.
"Com tudo isso aí, ainda é bom de morar aqui. Não tem jeito, não tem pra
onde ir. A gente tem que gostar daqui. E estamos aí até eles resolverem
alguma coisa pra nós. Se tiverem alguma solução pra nós, saímos de
boa", completa o amigo Antonio Carlos.
Na Radial Leste, a situação dos quase mil moradores da Comunidade do
Cimento é ainda pior. Os barracos de madeira se multiplicaram na
recessão. Ali ninguém têm água encanada. Eles dividem três banheiros em
condições precárias, um para mulheres, outro para homens e um terceiro
para homossexuais.
Um morador conhecido como Santista tem câncer de pele há dez anos. Ele é
técnico em telecomunicações e tem formação militar, mas a doença o
impede de trabalhar.
"Trabalhei na Telesp, na Força Aérea, na Telefônica, mas não consigo
voltar no mercado. Não passo, você acha que vou passar? Eu tenho minha
família, sou divorciado, tenho minha filha.
- E eles vêm te visitar?
Não, tenho vergonha.
- E o senhor vai visitá-los?
Não vou também.
- Faz quanto tempo que não vê sua filha?
Três anos mais ou menos.
- Está com saudades dela?
Nossa! Todo dia. Todo dia sinto saudade.
- Já tentou trazê-la aqui?
Nunca! Tenho vergonha, não quero que ela veja isso aqui não", disse.
O crescimento destas comunidades reflete um dado alarmante: a pobreza
extrema na Grande São Paulo aumentou 35% entre 2016 e 2017.
O ônus excessivo com o aluguel, quando uma família compromete mais de
30% da renda, aumentou 10% na capital. Já o adensamento excessivo,
quando mais de quatro pessoas ou mais dividem o mesmo cômodo, cresceu
32%.
A favela do Vergueiro era a maior da cidade até os anos 60. Os moradores
foram despejados para dar lugar a um bairro nobre, a Chácara Klabin, e
fundaram outra favela, Heliópolis, hoje a segunda maior da cidade.
É o mesmo roteiro do paraibano José Moura da Silva, 72 anos. Ele chegou
em São Paulo nos anos 70 e foi morar na Favela do Jardim Edite. Em 95,
foi removido para a construção da Avenida Águas Espraiadas. Recebeu R$
3.000 reais de indenização e comprou um barraco na Favela do Real
Parque, que foi destruído em um incêndio em 2010.
Ele chegou a reconstruir a casa, mas foi despejado de novo. Aí morou por
dois anos em uma kombi abandonada de uma amiga. Hoje, mora de favor, em
um quarto precário dentro de um ferro velho.
"Cheguei aqui isso tudo aqui era favela, pra lá era água, capim...
- A Berrini?
Sim, a Berrini era rua de terra. Pra lá, onde tem aqueles prédios
grandes, era tudo capim e água. Pobre não tem vez. Se não tiver um
milagre pra dar uma força não vai. Mas eu levo a vida do jeito que Deus
quer mesmo. Luto praqui, luto pracolá. Arrastando uma carrocinha, tô com
meu dinheiro no bolso, fazendo minha comida... Tá bom, né?
- O senhor desistiu de ter uma casa?
Não! Só desisto quando eu morrer", revelou.
Os subterrâneos também servem de moradia. Num buraco aberto embaixo de
um viaduto no centro, vive o Bahia. Há três meses, o crack o fez sair de
casa e largar o emprego de mecânico. É naquele ambiente totalmente
escuro e insalubre, que ele buscou abrigo.
"- Como é morar nesse subterrâneo?
Maior desgraça, maior sofrimento. Rato, barata...
- E você veio pra cá, por que?
Porque eu sou usuário do crack. E não me leve a mal não. Eu tô me sentindo mal de falar sobre isso. Sinceramente...
- Por que te faz mal?
É porque eu tenho vergonha. Tô me sentido mal em falar sobre isso. É tão
ruim que eu não gosto nem de falar. Não sou bandido, não roubo, não
trafico, nem nada. Não tenho coragem de roubar, matar, traficar. Apesar
de eu estar na "nóia"eu não sabia que eu conseguia falar direito. A
pedra é uma desgraça. Pessoal, eu vou começar a chorar. Não leve a mal
não, eu vou entrar, tá? Desculpa".
*Com colaboração de Natália Mota
Imigrantes se multiplicam em favelas e ocupações no centro e periferia de SP
A reportagem da CBN entrou em um hotel na
Zona Norte de São Paulo ocupado por imigrantes de dez países. A ocupação
é chefiada pelos mesmos coordenadores daquela que desabou no Largo do
Paiçandu. A presença cada vez mais constante dos estrangeiros também vem
mudando a cara de favelas paulistanas.
Por Guilherme Balza
Quatro e meia da tarde de uma terça-feira. Dezenas de crianças negras
desembarcam de peruas escolares. As meninas usam trancinhas enfeitadas.
Os pais as aguardam em frente a um hotel em estilo neoclássico
inacabado, próximo à rodoviária do Tietê, na Zona Norte de São Paulo.
O hotel é, na verdade, uma ocupação, formada por imigrantes de ao menos dez nacionalidades.
Uma Torre de Babel do terceiro mundo.
Não há elevadores. O movimento nas escadas é constante. No quinto andar,
ficam os nigerianos. No quarto, mulheres filipinas, que trabalham como
empregadas domésticas. Algumas já foram flagradas em trabalhos análogos à
escravidão.
Também há moradores de Angola, Haiti, Congo, Senegal, Tanzânia, Bolívia, Peru e do Brasil, quase todos de origem nordestina.
Cada família paga R$ 260 por mês aos coordenadores, os mesmos da
ocupação que desabou no Largo do Paiçandu. O hotel é avaliado em R$ 9
milhões, mas só a dívida com o IPTU ultrapassa R$ 11 milhões.
A assistente social Monica Quenca trabalha na Missão Paz, uma ação da
Igreja Católica de acolhimento a imigrantes. Ela diz que as ocupações
são a única alternativa para o imigrante que quer escapar do pior: morar
na rua.
"Com essa crise econômica e política que a gente está, alguns que já
estavam trabalhando há três, quatro anos, na mesma empresa, perderam
seus empregos. Ninguém tem poupança, ninguém guardou nada. Por mais que
ele esteja ganhando bem e não tenha gastos, ele manda o dinheiro pra
família. Depois disso, ele já tá aqui no Brasil, já tem a documentação,
já fala português, ele não tem mais porque chegar num serviço como o
nosso. Ele vai ficar na rua. Infelizmente isso tem sido comum. Isso
começa a mexer psicologicamente com eles. A gente tem tido um
agravamento nessa história de saúde mental", explica a assistente
social.
Os estrangeiros são cada vez mais numerosos nas ocupações no Centro. Uma
delas, inclusive, batizada de Leila Khaled, começou com refugiados
sírios e palestinos. Mas eles também estão mudando a cara de favelas e
ocupações na periferia.
Se os imigrantes do início do século passado moravam perto da linha de
bonde, os recém-emigrados se concentram em comunidades próximas à linha
de trem que parte do Brás, região onde muitos trabalham informalmente.
A angolana Maria Maleka morou sete meses na ocupação do hotel da Zona
Norte. Ela fugiu da perseguição dos próprios familiares que disputavam a
herança dos pais dela, mortos num acidente. Sem dinheiro, se mudou para
uma favela na Zona Leste, com o marido e dois filhos pequenos.
"Meu marido recebe R$ 800 de salário. Eu tô batalhando, procurando
emprego. Saio de manhã, deixo ele com as crianças e vou procurar", diz a
angolana. "Ah, tenho saudade [de Angola], mas... Não dá pra voltar. Eu
tenho muita saudade do meu irmão. Se ele puder vir [ao Brasil], eu fico
melhor."
A comunidade Chaparral, na Penha, Zona Leste, surgiu há cinco anos e tem
imigrantes do Peru, Bolívia, Angola e Haiti. A boliviana Gabriela
Chambi passava sempre por ali ao lado quando levava o filho à escola.
Ela pagava mais de R$ 1.000 de aluguel e estava endividada. Decidiu
vender quatro máquinas de costura para pagar R$ 400 no lote e começar a
construir uma casa de dois cômodos. Gabriela ganha um real por peça
costurada, mas agora tem dificuldade para receber encomendas.
"Eu sofro um pouco de preconceito. Porque quando eu faço currículo e
falo que moro na comunidade as pessoas desconfiam de mim. Não sei por
quê. Aqui ninguém quer deixar serviço pra mim porque dizem que é
perigoso. Antes era melhor. Agora, pouco a pouco, com a crise no Brasil,
pra nós já não tem trabalho. Sinto muita falta [da Bolívia], muita
saudade, muita... Da minha família, dos meus costumes, as comidas...
Tudo", conta a imigrante.
Na favela do Jardim Piratininga, no Cangaíba, também na Zona Leste,
moram cerca de 150 famílias de imigrantes. A jornalista Peggy Ndona vive
ali com o marido e dois filhos pequenos. Ela deixou o Congo há dois
anos após ter sido espancada e estuprada por policiais do governo que a
perseguiam politicamente. Chegou no Brasil grávida, com o filho de dois
anos. O marido só veio depois. Pra piorar, o agenciador brasileiro
furtou os documentos e US$ 5 mil dela.
"Aqueles brutos me agrediram grávida (...) Financeiramente eu tinha uma
vida boa no Congo. Ganhava bem. Minha casa era muito grande, tinha
carro, tinha tudo. E aqui no Brasil... (risos). É difícil, viu...
Cheguei aqui, morava num abrigo. Quando cheguei, fui roubada, perdi meus
documentos, perdi tudo. Estava grávida. Faltou pouco pra eu ficar
louca", conta a jornalista.
Peggy hoje trabalha como auxiliar de cozinha e ganha R$ 1.200. Gasta
metade do salário com o aluguel. A mãe dela, que mora no Congo, ainda
não se acostumou com a filha morando em uma comunidade.
"'Estou vendo na TV pessoas mortas! Estão matando as pessoas, estão
agredindo as meninas!'. Ela fala tudo de ruim. Eu digo 'mãe, onde eu
moro não vejo isso. Eu vejo só na TV também'. A gente tem um preconceito
enorme das comunidades", lamenta Peggy.
A três quadras da casa de Peggy, há uma espécie de pensão, bem ao lado
da linha de trem, habitada por haitianos e angolanos. São 46
apartamentos de dois cômodos, alugados por R$ 500. As histórias dos
haitianos são sempre muito parecidas. Com a crise, muitos perderam
emprego e passaram a viver de bico. Não conseguem mandar dinheiro pra
família, nem viajar de volta ao Haiti.
É o caso do Franz Pierre, que mora na pensão com a mulher e o filho bebê:
"No Brasil se tem 50 haitianos, 40 não tem trabalho (...) O dono da casa
é gente boa. Tô devendo cinco meses [de aluguel] pra ele.
- E ele tá deixando você ficar?
É, porque eu tenho um bebezinho de 11 meses. (...) A gente tem que ficar
aqui. Aqui é melhor que lá. Lá é pior ainda. Eu tenho que mandar
dinheiro pra ajudá-los [no Haiti]. Eles estão chorando por nós, não por
eles. Eles perguntam 'O que você comeu? Você está fazendo o que pra
pagar aluguel?'. É isso. Mas a gente não pode falar todas as coisas pra
eles pra não fazê-los chorar. Mas eu vou arrumar emprego, com certeza.
Eu tenho fé em Deus."
*Com colaboração de Natália Mota