Bolsonaro leu a Constituição, não entendeu nada e jogou fora das 4 linhas

Um falecido amigo que chegou à presidência do STJ (Superior Tribunal de Justiça) falava, off the record, sobre como alguns cidadãos esforçavam-se a ler a Constituição, mas, apesar do empenho, não logravam entender nada: "Liam, sim, mas não entendiam".
A resposta de Bolsonaro à delação do seu ex-ajudante de ordens é uma repetição do bordão de "jogar dentro das quatro linhas". Só mostra, mais uma vez, a leitura da Constituição sem a compreensão exata.
Bolsonaro é um golpista, há prova farta a respeito. Daí, as suas leituras e interpretações enviesadas.
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Ora, aquele que aceita o poder moderador das Forças Armadas — a fazer virar no túmulo o seu idealizador, Benjamin Constant de Rebecque, que só admitia às monarquias constitucionais — é uma prova de Bolsonaro haver lido, mas não compreendido.
As nossas Constituições republicanas não estabeleceram o tal poder moderador para as Forças Armadas. Nem com leguleios ou artes de Procusto, o lendário adaptador de situações, dava para concluir, à luz da Constituição, por esse poder moderador. Bolsonaro assim entendeu — e teve até um advogado, segundo Mauro Cid, partícipe da reunião golpista, a possuir igual interpretação canhestra.
A nossa Constituição prevê o Estado de Defesa. Só que não era caso de aplicação. Em outras palavras, o instituto não foi colocado na Constituição para servir ao inconformismo de um perdedor não reeleito.
Bolsonaro leu sobre o Estado de Defesa, mas nunca entendeu nada a respeito e quis jogar com ele. Estava fora das quatro linhas.
A propósito e como constou do documento de golpe apreendido na casa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres, temas constitucionais como Estado de Defesa, garantia da Lei e da Ordem e convocação das Forças Armadas foram apresentados aos comandantes das três Forças. O aval golpista foi dado apenas pela Marinha, consoante sustentou Mauro Cid.
Mais uma vez: Bolsonaro conhece os temas, seguramente leu sobre eles, mas não entendeu absolutamente nada.
Na reunião com os comandantes militares e na minuta de golpe apreendida na casa de Torres, a meta era intervir no TSE (Tribunal Superior Eleitoral). Isto para anular as eleições presidenciais e realizar outra.
E algo mais: como sempre quis o ex-presidente, outra eleição somente com as urnas novas, e estas estavam em zonas eleitorais onde Bolsonaro ganhou. Para as demais, o viciado e fraudável sistema de voto impresso.
Quanto a isso, a Constituição prevê a intervenção. Bolsonaro leu. Só que não compreendeu o sistema constitucional de não ser legítimo um Poder de Estado, no caso o Executivo, intervir no outro, na hipótese o Judiciário. Os Poderes são independentes, escreveu Montesquieu, ao desenvolver a teoria da tripartição fundamental, a partir da obra de John Locke.
Por se tratar de Bolsonaro, a nota emitida, a reforçar que ele "jogou dentro das quatro linhas da Constituição", está em conformidade absoluta com o seu pensamento. Só que não é legítima à luz da Constituição. Ele leu, pescou institutos, mas não entendeu coisa alguma.
No que toca a processar criminalmente por calúnia (crime contra a honra) é outra atrapalhada de Bolsonaro. Não está dito o nome Mauro Cid, mas é ele o avisado.
O ex-ajudante de ordem é um colaborador de Justiça. Seus relatos são checados e a mentira leva à rescisão do contrato celebrado. O vazamento de deleção prestada quando Mauro Cid estava preso cautelarmente não pode ser colocado na sua conta criminal.
Jogar dentro das quatro linhas não é simples. Não entender os limites, interpretar erroneamente as fronteiras, significa estar a jogar fora das quatro linhas. Cabeças 'desmobiliadas' (vazias de ideias e conhecimento), como a de Bolsonaro, distorcem. A hermenêutica nunca foi o forte do ex-presidente,
O "jamais compactuou" adotado pela defesa de Bolsonaro, após parte do conteúdo da delação de Mauro Cid ter sido revelada pelo UOL, encontra desmentido nas condutas e declarações golpistas de Bolsonaro.
Eleito presidente da República, o general Eurico Gaspar Dutra, um dos sustentadores da ditadura Vargas, sempre perguntava, antes de agir, se o "Caderninho" (forma a que se referia à Constituição) autorizava.
Assim como Bolsonaro, o general Dutra lia o "Caderninho", mas constantemente perguntava sobre o exato significado.
Pano rápido. Bolsonaro leu a Constituição, mas não a entendeu. E fez interpretações incorretas, egoístas, no seu interesse de se manter no poder. A sua nota beira o ridículo.
Opinião
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