Inquérito revela produção de desinformação para incentivar atos em quartéis


Jamil Chade
Colunista do UOL, em Genebra
09.01.23 - 	Militares do Exército dispersam acampamento e bolsonaristas vão embora da praça em frente ao quartel-general, em Brasília
09.01.23 - Militares do Exército dispersam acampamento e bolsonaristas vão embora da praça em frente ao quartel-general, em Brasília Imagem: Mateus Vargas/Folhapress


As investigações conduzidas pela Polícia Federal, e que estão descritas na decisão do ministro Alexandre de Moraes, revelam que a produção de desinformação pelo governo de Jair Bolsonaro era meticulosamente organizada, inclusive para incentivar os atos diante dos quartéis pelo Brasil depois das eleições de 2022.

Tudo aposta que havia plano, meta e recursos para a desestabilização social.

Os ataques contra a democracia, portanto, não eram involuntários. O que existia era uma produção e uso da mentira como instrumento da política e do poder.

Premeditada, a desinformação era a estratégia de ação, misturando tanto aliados na imprensa tradicional, blogueiros e verdadeiros núcleos e equipes.

Durante os quatro anos de Bolsonaro, a mentira matou e ampliou um mal-estar profundo. Afonso Borges cunhou o termo "Anos Malditos" para designar o período que atravessamos, "sob a égide do nacionalismo, ignorância e beligerância".

Se a propaganda se mistura com a história da política, o que o inquérito revela é como ela era a aposta para justificar um golpe de estado. Nos diálogos, os próprios suspeitos admitiam que não tinham encontrado sinais de fraude nas urnas brasileiras, tese reforçada por Bolsonaro desde que fazia campanha, em 2018. Mas isso era irrelevante. A notícia da vulnerabilidade à fraude seria produzida.


Um dos trechos da peça de acusação revela, em parte, como era a rota da mentira, tanto para permitir que ela influenciasse a opinião pública, como nutrisse ações legais.

Uma desinformação com o potencial para desestruturar sociedades, abalar eleições, mudar o rumo de países, criar rupturas entre membros de uma família e instalar o ódio. Sempre com um objetivo: o poder.

O caso citado no inquérito se refere a uma suposta descoberta de vulnerabilidades das urnas eletrônicas.


A PF apontou para a existência de um "Núcleo de Desinformação e Ataques ao Sistema Eleitoral" durante as investigações. O grupo composto por nomes como Mauro Cid, Fernando Cerimedo e Anderson Torres tinha como função a "produção, divulgação e amplificação de notícias falsas quanto a lisura das eleições presidenciais de 2022 com a finalidade de estimular seguidores a permanecerem na frente de quartéis e instalações, das Forças Armadas, no intuito de criar o ambiente propício para o golpe de estado, conforme exposto no tópico 'Das Medidas para Desacreditar o Processo Eleitoral' constante na presente representação".

Cerimedo, que atuou na campanha do argentino Javier Milei, e os demais membros teriam ainda produzido e divulgado "estudos", sempre com a meta de "estimular seguidores a permanecerem na frente de quartéis e de instalações das Forças Armadas".

Segundo a investigação, a "divulgação (por parte de Cerimedo) em uma live de notícias fraudulentas sobre uma suposta investigação a respeito das eleições brasileiras e constatação de disparidades entre a distribuição de votos nas urnas eletrônicas mais novas e mais antigas (que implicariam anomalia favorável ao candidato de número 13 nas urnas fabricadas antes do ano de 2020) é exemplo de tal estratégia ilícita e antidemocrática".

A conclusão da PF é de que existiria uma "ação coordenada dos integrantes do grupo criminoso para amplificação das falsas narrativas que construíram e replicavam acerca do sistema eleitoral brasileiro".

A cronologia dos fatos apresentados demonstra que os investigados utilizaram, de forma coordenada, diversos meios para disseminar informações falsas sobre o processo eleitoral brasileiro.

A rota da desinformação funcionaria da seguinte forma:

  1. Um material apresentando falsas vulnerabilidades nas urnas eletrônicas produzidas antes de 2020 foi elaborado pelo grupo, inclusive com o auxílio do que Cid chamou de "nosso pessoal", se referindo a especialistas na área de informática (incluindo hackers).
  2. Seguindo a estratégia de difusão por multicanais, o material é repassado para o argentino Fernando Cerimedo, que disseminou o conteúdo falso em uma live realizada em 4 de novembro de 2022.
  3. O conteúdo da live foi resumido e propagado por vários integrantes da organização, inclusive por militares.
  4. Em seguida, visando burlar as ordens judiciais de bloqueio, os investigados disponibilizaram o conteúdo em servidores localizados fora do país. Identificou-se ainda que o mesmo conteúdo também estava contido no documento nominado "bolsonaro min defesa 06.11- semifinal.docx", endereçado ao General Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, então ministro da Defesa, e encaminhado por Mauro Cid ao General Braga Netto, por WhatsApp.
  5. A última etapa foi a "Representação Eleitoral para Verificação Extraordinária", apresentada pelo Partido Liberal no dia 22 de novembro de 2022.

A tal representação foi indeferida pelo TSE por ser "ostensivamente atentatório ao Estado Democrático de Direito e realizado de maneira inconsequente com a finalidade de incentivar movimentos criminosos e antidemocráticos que, inclusive, com graves ameaças e violência vem obstruindo diversos rodovias e vias públicos em todo o Brasil".

"No entanto, mesmo os investigados tendo ciência da chance remota de êxito, a estratégia adotada teve a finalidade de servir de fundamento para a tentativa de execução do golpe de Estado, que estava em curso desde novembro de 2022", alerta o STF.

A decisão conclui que "a contestação formal ao resultado das eleições por um partido político, juntamente com a disseminação da narrativa falsa por meio de influenciadores digitais e alguns integrantes da mídia tradicional, com forte penetração em parcela da população ligada à direita do espectro político manteve o discurso de uma atuação do Poder Judiciário, especialmente do STF e do TSE, ilícita, extrapolando os limites constitucionais, com a finalidade de impedir a reeleição do então Presidente Jair Bolsonaro, indicando para seus seguidores o esgotamento dos instrumentos legais para reversão do resultado, devendo-se adotar uma outra forma de ação mais contundente, diante das 'arbitrariedades' do poder Judiciário".

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL


JAMIL CHADE

https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2024/02/10/inquerito-revela-producao-de-desinformacao-para-incentivar-atos-em-quarteis.htm

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