Heleno tinha pressa para que mundo não reconhecesse eleição. Fracassou

 

Jamil Chade
Colunista do UOL, em Genebra
General Augusto Heleno
General Augusto Heleno Imagem: Dida Sampaio/Estadão Conteúdo

O general Augusto Heleno tinha pressa. Muita pressa. Ele admitiu que o reconhecimento internacional dos resultados da eleição de 2022 seria decisivo para sacramentar o processo democrático no Brasil, sugerindo que isso impediria que houvesse qualquer golpe de Estado no país depois da divulgação dos resultados.

Durante a reunião gravada entre a cúpula do governo, na qual ministros, o então presidente Jair Bolsonaro e aliados do governo falavam abertamente em 2022 sobre a possibilidade de um golpe, coube ao militar alertar que qualquer ação para impedir a vitória da oposição na eleição teria de vir antes do processo eleitoral.

Mas, durante sua defesa de uma ação concreta, ele faz um alerta a todos na sala sobre o papel do reconhecimento internacional.

"O que tiver de ser feito, tem de ser feito antes das eleições. Se tiver de dar soco, virar a mesa, terá de ser feito antes das eleições. Depois, será muito difícil que tenhamos nova perspectiva", alertou.

Ele lembrou de um encontro entre o ministro Edson Fachin e embaixadores, para dar garantias sobre o processo eleitoral brasileiro. "Essa conversa com Fachin foi exatamente com os embaixadores para que se elimine as possibilidades do VAR", disse. "No dia seguinte, todo mundo reconhece [o resultado das eleições], e fim de papo", alertou o general.

Em maio de 2022, o então presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Edson Fachin, apelou aos diplomatas estrangeiros que a "comunidade internacional esteja alerta contra acusações levianas" nas eleições. "Convido o corpo diplomático sediado em Brasília a buscar informações sérias e verdadeiras sobre a tecnologia eleitoral brasileira, não somente aqui no TSE, mas junto a especialistas nacionais e internacionais, de modo a contribuir para que a comunidade internacional esteja em alerta contra acusações levianas", disse.


Em outro momento da reunião da cúpula do governo, foi o próprio Bolsonaro que deixou claro que o foco internacional era uma de suas prioridades. "Vou começar a ser (contundente) com os embaixadores, porque se aparecer o Lula com 51% no dia 2 de outubro, acabou. Até reagir, vai ser um caos, vai pegar fogo, o Brasil", disse.

Dias depois, e contrariando uma recomendação do Itamaraty, Bolsonaro convocou os embaixadores estrangeiros em Brasília para uma reunião na qual denunciou o sistema eleitoral brasileiro. Outro fracasso enorme.

Operação internacional era realidade

Enquanto ambos defendiam uma ação internacional, antes que o mundo reconhecesse a eleição, a realidade era que uma operação envolvendo ministros do STF, sociedade civil, partidos políticos e personalidades brasileiras no exterior se engajaram em montar uma estratégia para alertar as principais potências sobre a necessidade de que houvesse um apoio ao processo eleitoral brasileiro.


E foi exatamente isso que ocorreu. Em julho de 2022, uma reunião entre os chefes da pasta de Defesa do Brasil e dos EUA sinalizou aos militares em Brasília que eles não teriam o respaldo de Washington, caso optassem por uma aventura golpista.

De um lado da mesa, estavam Laura Jane Richardson, general quatro estrelas do Exército dos EUA e comandante do Comando Sul, e Lloyd Austin, secretário de Defesa norte-americano.

De outro, o general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, ministro da Defesa do Brasil e ex-comandante do Exército brasileiro.

Fontes que estiveram naquela sala relembram como o tom usado pelos americanos foi claro: as instituições democráticas brasileiras eram sólidas. Ou seja, não haveria qualquer tipo de apoio a uma ofensiva por parte dos militares brasileiros em relação ao questionamento contra a democracia no país.

O recado sutil foi entendido por todos que estavam naquele local. Dias antes, o então presidente Jair Bolsonaro havia usado um encontro com embaixadores estrangeiros em Brasília para atacar as urnas eletrônicas e questionar o processo eleitoral no Brasil.

Naquele momento, o governo recebia uma série de visitas do mais alto escalão do governo americano, incluindo o chefe da CIA (agência de inteligência dos EUA) e a cúpula da Segurança Nacional.


Hoje, diplomatas admitem que a pressão discreta por parte dos EUA ajudou a mandar um recado aos militares brasileiros de que um processo golpista não encontraria respaldo pelo mundo.

Pesou, ainda, uma carta de senadores americanos pedindo que o presidente Joe Biden suspendesse qualquer acordo militar com o Brasil, caso uma ruptura institucional ocorresse.

O recado era simples: um golpe poderia até ocorrer. Mas o dia seguinte do novo regime traria custos elevados para aqueles no poder.

Sem o apoio de membros da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), restaria ao eventual novo governo golpista apenas alianças com párias internacionais e regimes isolados dispostos a usar o Brasil para fortalecer posições contra os EUA.

Se a ação americana deu resultados, a iniciativa não ocorreu por acaso e nem se limitou aos EUA. Desde 2021, forças políticas nacionais, ministros do STF, grupos de ativistas, embaixadores e entidades de direitos humanos começaram a identificar que o cenário de um eventual golpe poderia ocorrer no Brasil, repetindo a invasão do Capitólio nos EUA ou criando dificuldades e instabilidade para o novo governo.

A ofensiva brasileira tinha como objetivo criar uma situação na qual o custo de um golpe fosse insuportável aos seus apoiadores, desde militares até operadores do sistema financeiro. Para isso, precisavam que o mundo impusesse esse custo.


Em sigilo, conversas começaram a ser realizadas para alertar países de que era necessário uma reação para ajudar a blindar a democracia brasileira. A estratégia contou com vários atores, de diversos Poderes.

Um deles foi o uso deliberado do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) e uma ofensiva para convencer embaixadas estrangeiras em Brasília de que as urnas eram confiáveis e que o sistema era sólido.

Ainda em 2022, uma visita organizada pelo Judiciário aos delegados de vários países causou uma profunda irritação em Bolsonaro, já que desmentia a própria narrativa do presidente.

Em Washington e em capitais europeias, grupos de ativistas brasileiros foram recebidos por governos, deputados e autoridades, justamente para tratar da ameaça que a eleição no final daquele ano representava.

Embaixadores aposentados e dissidências dentro do Itamaraty também agiram para fazer soar o alerta em diversas capitais pelo mundo. "O recado era de que existia uma chance real de que o governo Bolsonaro repetiria o comportamento de Trump e não aceitaria o resultado da eleição", relembra um embaixador brasileiro, na condição de anonimato. O ex-presidente sempre negou qualquer participação em uma tentativa de golpe de Estado.

Nos EUA, o embaixador Thomas Shannon também foi um importante interlocutor entre o gabinete de Joe Biden e aqueles que alertaram para o risco de um golpe.


Bolsonaro tentaria revidar, organizando uma reunião com embaixadores estrangeiros para criticar o sistema eleitoral nacional. Com várias das delegações já alertadas, o encontro foi um fracasso e, meses depois, gerou a inelegibilidade do ex-presidente.

O reforço da blindagem internacional viria ainda na ampliação de observadores internacionais, algo que Bolsonaro tentou bloquear. O TSE, porém, se apressou para fechar acordos e garantir a presença estrangeira durante a eleição.

1º ato: a eleição

O primeiro teste desta articulação seria a eleição. Durante a apuração, no segundo turno, embaixadas estrangeiras enviaram mensagens de apoio ao processo eleitoral e de confiança em relação às urnas.

Imediatamente após o anúncio dos resultados, governos se apressaram em felicitar Lula. Ali, o que estava em jogo não era o candidato do PT. Mas a capacidade de que, nas urnas, a extrema-direita fosse derrotada.

"Naquela noite, o mundo olhava para o Brasil como se a democracia estivesse em jogo em nossas próprias casas", afirmou um diplomata francês. A tese era a de que, se um país da dimensão do Brasil e com suas instituições fosse alvo de um ataque desestabilizador, outros poderiam ser incentivados a seguir o mesmo caminho.


"Todos queríamos saber até que ponto a extrema-direita mundial seria capaz de causar um terremoto", confessou outro diplomata.

Não por acaso, assim que o resultado do TSE foi divulgado, dezenas de governos emitiram comunicados comemorando e chancelando a vitória de Lula. Em menos de 48 horas, mais de cem países tinham reconhecido a derrota de Bolsonaro.

2º ato: a posse

O segundo teste seria a posse de Lula.

Para serviços de inteligência de diversos governos, os sinais eram de que os mesmos modelos de atentados ocorridos e promovidos pela extrema-direita americana poderiam se repetir no Brasil. A constatação era de que esse movimento é globalizado e que, portanto, os golpistas no país teriam "inspiração" e orientação do exterior.

Uma vez mais, governos de todo o mundo enviaram seus representantes para Brasília. Não se tratava de uma chancela ao presidente Lula. Mas uma demonstração de força contra a extrema-direita e uma tentativa de blindar qualquer tipo de ação.


Augusto Heleno tinha razão. O reconhecimento internacional seria decisivo. O resultado da mobilização pelo mundo para a defesa da democracia brasileira foi uma posse com mais de 70 delegações estrangeiras, um recorde.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL


JAMIL CHADE 

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Todo sábado, Jamil escreve sobre tema sociais para uma personalidade com base em sua carreira de correspondente.

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