Ao retirar militares das urnas, TSE reconhece erro histórico

Existe, sem dúvida, um remédio para cada erro: corrigi-lo. Em decisão unânime, o plenário do Tribunal Superior Eleitoral aprovou resolução que retira as Forças Armadas do rol de órgãos e entidades aptas a fiscalizar o sistema eleitoral. Não haverá mais fardados na comissão de transparência das futuras eleições.
Ao apresentar a novidade, o ministro Alexandre de Moraes, presidente do TSE, declarou que a participação dos militares "não se mostrou necessária, razoável e eficiente". As palavras de Moraes valem como reconhecimento de um erro histórico.
Foi de boa-fé que o então presidente do TSE Luís Roberto Barroso atravessou os militares no caminho das urnas. A providência revelou-se desnecessária, irracional e ineficiente. O pressuposto era o de que as Forças Armadas, supostamente legalistas, funcionariam como antídoto contra o veneno de Bolsonaro. Deu tudo errado.
Barroso deu crédito à superstição segundo a qual oficiais do alto-comando poderiam atuar como moderadores de Bolsonaro. Aconteceu o oposto. A cabeça de certos generais e de outros generalistas incertos revelou-se um terreno baldio no qual o capitão jogava todo tipo de lixo —de teorias conspiratórias a mentiras sobre as urnas.
Desde 1996, quando a votação eletrônica estreou, Bolsonaro e sua prole disputaram 21 eleições. Venceram 19. Em 2016, quando disputou a prefeitura do Rio de Janeiro, o primogênito Flávio Bolsonaro caiu no primeiro turno, com irrisórios 14% dos votos. Em 2022, Bolsonaro perdeu para Lula no segundo turno pela magra diferença de 1,8% dos votos.
A despeito do histórico, Bolsonaro cavalgou as "minhas Forças Armadas" na sua cruzada contra o sistema eleitoral. Sua implicância era com o risco de derrota, não com as urnas eletrônicas. Isso ficou claro no documento em que o Ministério da Defesa expôs suas conclusões sobre a fiscalização das Forças no sistema eletrônico de votação.
Os militares concluíram que "houve conformidade entre os boletins de urna impressos e os dados disponibilizados pelo Tribunal Superior Eleitoral". O mesmo texto anotou que foi "inconclusivo" o teste com biometria. E colocou em dúvida a segurança das urnas.
Os militares sustentaram no documento que sua fiscalização "não permite afirmar que o sistema eleitoral de votação está isento de um eventual código malicioso que possa alterar o seu funcionamento."
Hoje, sabe-se que Bolsonaro enviou para a pasta da Defesa o hacker de Araraquara. Em depoimentos à PF e à CPI do Golpe, Walter Delgatti disse ter orientado os militares escalados para implicar com as urnas. A esse ponto de esculhambação chegou a democracia brasileira.
Entregue a Alexandre de Moraes pelo então ministro da Defesa, o agora sumido general Paulo Sérgio Nogueira, o resultado da inspeção militar nas urnas foi usado por Bolsonaro para esticar sua estratégia de questionamento da vitória de Lula. O teor do documento e a pregação do capitão mostraram-se compatíveis. Ambos usaram a insinuação como principal matéria-prima.
O texto jogou lenha na fogueira que ardia nos atos antidemocráticos e nos acampamentos que pediam golpe nas portas dos quarteis desde a proclamação do resultado da eleição presidencial, em 30 de outubro do ano passado.
Num trecho do relatório da inspeção eleitoral, os militares escreveram: "...Em suma, as oportunidades de melhoria indicam que é pertinente ampliar o acesso ao conteúdo do sistema, bem como realizar o trabalho das entidades fiscalizadoras conjuntamente com os técnicos do TSE, para o esclarecimento imediato de quaisquer dúvidas da equipe fiscalizadora."
Mais adiante tropeça-se em coisas assim: "Devido à complexidade do sistema eleitoral de votação e à falta de esclarecimentos técnicos oportunos e de acesso aos conteúdos de programas e bibliotecas [...] não foi o possível fiscalizar o sistema completamente, o que demanda a adoção de melhorias no sentido de propiciar a sua inspeção e análises completas."
Ou assim: "Na vertente dos mecanismos de fiscalização do sistema no momento da votação, a incapacidade de o teste de integridade e do projeto-piloto com biometria reproduzirem, com fidelidade, as condições normais de uso das urnas eletrônicas que foram testadas não permite afirmar que o sistema eleitoral de votação está isento de um eventual código malicioso que possa alterar o seu funcionamento."
No ofício em que encaminhou para Moraes o resultado da inspeção, o general Paulo Sérgio fez questão de borrifar suspeição: "Assinalo que o trabalho restringiu-se à fiscalização do sistema eletrônico de votação, não compreendendo outras atividades, como, por exemplo, a manifestação acerca de eventuais indícios de crimes eleitorais."
O general sugeriu ao presidente do TSE a realização de "uma investigação técnica para melhor conhecimento do ocorrido na compilação do código-fonte [das urnas] e de seus possíveis efeitos". Aconselhou a Justiça Eleitoral a "promover a análise minuciosa dos códigos binários" usados nas urnas.
A serviço de Bolsonaro, o general propôs "a criação de uma comissão específica, integrada por técnicos renomados da sociedade e por técnicos representantes das entidades fiscalizadoras." Insinuou, a 52 dias da posse de Lula, que a democracia brasileira estava sob risco. Pediu pressa.
"Em face da importância do processo eleitoral para a harmonia política e social do Brasil, solicito ainda a essa Corte Superior considerar a urgência na apreciação da presente proposição". Deu no que está dando.
Contra esse pano de fundo radioativo, não basta expurgar as Forças Armadas da fiscalização das urnas. É preciso retirar da toca os golpistas que continuam escondidos atrás das fardas e do patriotismo de fancaria.
Opinião
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