Sonho da casa própria mais caro e mais distante
Por Rita Serrano*
O financiamento dos principais programas do Estado brasileiro nas últimas décadas, em especial nos setores de habitação e infraestrutura, vem sendo realizado com duas principais fontes de recursos: os depósitos da caderneta de poupança e do FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço). O setor privado nunca demonstrou interesse em investir em longo prazo.
Esse modelo está sob pressão devido à queda drástica no saldo da poupança, ao uso cada vez mais indiscriminado dos recursos do FGTS e à nova regra de remuneração do Fundo. Embora seja positiva para os trabalhadores, essa mudança encarecerá o financiamento habitacional. O tema ganhou destaque recentemente, após a decisão da Caixa de reduzir o percentual de financiamento habitacional, tanto pelo Sistema de Amortização Constante (SAC), de 80% para 70%, quanto pela Tabela Price, de 70% para 50%.
Essas mudanças reduzirão a oferta de crédito habitacional da Caixa para imóveis novos, usados, comerciais e até lotes urbanizados, impactando um dos focos do governo Lula, especialmente para a classe média. A Caixa detém 68% desse mercado.
Atualmente, os depósitos da poupança são uma das principais fontes de recursos para financiamentos habitacionais. Devido ao direcionamento obrigatório de 65% dos depósitos, essa aplicação é remunerada pela Taxa Referencial (TR), inferior aos juros de mercado.
De acordo com matéria publicada no site UOL em 08/07, os saques da poupança superaram os depósitos em R$ 2,8 bilhões no primeiro semestre de 2024. A poupança amarga o sétimo semestre consecutivo de perdas, totalizando R$ 229,3 bilhões desde janeiro de 2021, consequência direta da alta taxa Selic, que torna outros investimentos mais atraentes.
Outro importante funding para o desenvolvimento urbano e de infraestrutura é o FGTS. Entre 2002 e 2023, o FGTS financiou obras em 98% dos municípios brasileiros (5.460 cidades). Segundo o Conselho Curador do Fundo, mais de 70% dos seus recursos estão aplicados em habitação, infraestrutura e saúde, e o restante em títulos públicos federais. Cerca de 81% dos financiamentos habitacionais pelo FGTS foram concedidos a pessoas com renda entre 1 e 4 salários-mínimos.
Contudo, diversos fatores têm tornado o uso do FGTS mais restrito e caro para financiamento habitacional. Apenas 37,4% da população ocupada possui carteira assinada, segundo dados do IBGE, mesmo com o aumento da formalidade no governo Lula. Além disso, o FGTS tem sido utilizado para finalidades diversas, como o auxílio emergencial e o saque-aniversário, que acumulou retirada líquida de R$ 45,9 bilhões entre 2020 e 2024. A nova regra de remuneração das contas, determinada pelo STF, também contribui para a maior restrição do fundo no médio prazo.
Esse cenário prejudicará principalmente os mais pobres e a classe média, que enfrentarão uma menor oferta de crédito e juros mais altos, impactando ainda o setor da construção civil, fundamental para a geração de empregos e para a economia.
Desde 2023, alternativas para aumentar o funding na área de habitação vêm sendo discutidas no governo federal e nos bancos. Entre as soluções de curto prazo estão: alterar as regras de liberação dos compulsórios pelo Banco Central, reduzindo o recolhimento sobre os depósitos de 20% para 15%, e compensar a perda da poupança com recursos do FGTS, embora isso requeira a suspensão do saque-aniversário.
Outra hipótese é avaliar o uso do Fundo Garantidor de Crédito (FGC) como alternativa para investimentos em infraestrutura. Atualmente, cerca de 55% das aplicações do FGC estão em operações compromissadas com liquidez diária, valor um pouco acima dos limites de socorro de liquidez e do programa de socorro aos depositantes. O restante (45%) poderia ser utilizado como funding para infraestrutura.
Há também especulações sobre o uso dos fundos de pensão, embora esses enfrentem restrições devido às metas atuariais, regras normativas e a limitação de crédito de longo prazo.
Para o médio e longo prazo, sugiro que se repense o produto poupança, tornando-o mais atraente. Avaliar a capitalização dos bancos públicos pelo Tesouro e, obviamente, a redução da taxa básica de juros (Selic) também é fundamental.
O direito à moradia está previsto na Constituição Federal como um direito social fundamental, mas ainda está longe de ser universal. Vale lembrar que o déficit habitacional no Brasil cresceu 6,1% entre 2019 e 2022, segundo a Fundação João Pinheiro. Em 2022, o país tinha um déficit habitacional absoluto de 6,2 milhões de moradias, com o custo excessivo do aluguel sendo o maior problema enfrentado por muitas famílias.
Não existe saída fácil. Fato é que o modelo vigente está exaurido e forçará o governo, a elite econômica e política, e a sociedade a encararem, em breve, um inevitável acerto de contas sobre qual modelo de financiamento para a moradia digna e programas de infraestrutura será entregue às próximas gerações.
*Palestrante, ex-presidente da Caixa, ex-presidente do Sindicato dos Bancários do ABC. Autora de vários livros e artigos, conselheira de administração, mestre em Administração. Considerada uma das mulheres mais influentes do Brasil e da América Latina, segundo a Bloomberg Línea de 2023.
https://iclnoticias.com.br/sonho-da-casa-propria-mais-caro-e-mais-distante/