Carta para São Paulo: você é de onde eu parto, todos os dias

 

JAMIL CHADE
Colunista do UOL
Vista do mirante do Sesc Avenida Paulista, em São Paulo
Vista do mirante do Sesc Avenida Paulista, em São Paulo Imagem: AMANDA PEROBELLI/REUTERS

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2023 é um marco em minha vida. A partir de agora, já vivo mais tempo no exterior que todos meus anos no Brasil. E, ainda assim, acordo todos os dias como estrangeiro. Um forasteiro para o local onde escolhi viver.

Sou neto de imigrantes e pai de imigrantes. Ou seria apenas eu o imigrante?

Mas, nestas semanas, ao passar uma temporada em São Paulo, descobri que você é o que eu considero como "minha cidade". Um termo que, por anos, eu me recusava a usar. Uma mistura de ingenuidade e arrogância. Afinal, depois de passar por 70 países, eu pensava: "o que exatamente querem dizer as fronteiras e nacionalidades?"

Pertencer, ser e se tornar são três dos nossos pilares existenciais. E, em São Paulo, sobrevive parte de meu sentimento de pertença.

"Vem viver aqui, então", afirmam na velocidade das redes sociais meus melhores detratores. Quem não pega o trânsito da cidade, não vive seus dilemas, violência e desabastecimentos, sempre terá uma visão romântica.

Concordo com todos eles.

Sou ainda consciente de minha infância privilegiada, enquanto teu concreto asfixiava —e continua deixando sem ar— o sonho de tantos outros que tentam se esconder do frio e da fome paulistana.


Não idealizo um lugar que abandona seus filhos. Não há lugar para odes quando a democracia é um espaço de poucos e a violência uma das únicas certezas.

A "minha cidade" à qual me refiro não é de concreto e nem de subprefeituras. Não é o Copan, o Ibirapuera ou o Pátio do Colégio que me servem de cartão postal.

Sua arquitetura é de amigos que me conhecem sem eu ter de explicar o que penso ou parentes que, independentemente de vertentes políticas, conseguem olhar para quem somos.

Seu mapa é desenhado por um samba despretensioso no mesmo lugar há 30 anos e por um mesmo prato servido com o gosto de infância.

Sua sinfonia não está no Municipal. Mas ao entoar um Carinhoso numa madrugada de choro entre conhecidos e desconhecidos que vão ensaiando à medida que cada próxima estrofe se aproxima.

Seu centro não é a Sé. Mas um abraço.


Como num caleidoscópio que muda de imagem a cada giro, ela é desenhada por desafios que a vida impõe a pessoas que amamos.

Num evento nestas noites paulistanas, fiz um breve discurso a uma seleta plateia composta por personalidades impactantes de nossa cultura. Era uma fala que eu já havia feito em outras línguas e outras latitudes. Mas quando citei uma passagem de algo que havia ocorrido nos anos de minha adolescência, um dos convidados —um amigo de uma vida inteira— se lembrou que estava presente no dia que aquele fato ocorreu.

Era uma confirmação a mim mesmo que o passado é compartilhado. Que não existimos sem um lar.

Viajar para o que se chama de "minha cidade" é correr a si mesmo. É uma odisseia emocional na qual os passaportes e documentos exigidos na Polícia Federal são irrelevantes.

Aprendi com uma amiga que não há como fazer promessas, num mundo repleto de insurreições. Não te direi, portanto: "um dia eu volto". Mas te garanto que eu volto, sempre que eu partir para um novo destino.

O lar, como diriam, é de onde partimos. E será sempre de São Paulo que partirei.


Jamil

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL


JAMIL CHADE

Todo sábado, Jamil escreve sobre temas sociais para uma personalidade com base em sua carreira de correspondente. 

https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2023/07/23/carta-para-sao-paulo-voce-e-de-onde-eu-parto-todos-os-dias.htm

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