'Se o militar quer ser político, ele que mude de profissão. As duas atividades não combinam', diz chefe do Exército


Paiva afirmou que no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro a participação de militares da reserva e da ativa na administração mudou a percepção da opinião pública sobre a caserna. Entre os generais que estiveram no governo estavam Luiz Eduardo Ramos, que saiu direto do Comando Militar do Sudeste para a Secretaria de Governo e Walter Braga Netto, que saltou do Estado Maior do Exército, para a chefia da Casa Civil. Em 2022, foi candidato a vice na chapa derrotada de Bolsonaro à reeleição. O general Eduardo Pazuello, hoje deputado federal pelo PL fluminense, foi ministro da Saúde antes de ir para a reserva.

Paiva sinaliza claramente que este tempo passou. “Além de sermos apolíticos temos que passar essa percepção exata de que política é fora dos quartéis– isso foi muito misturado e, por isso, se criou essa percepção. Mas nós, não. Nós somos apolíticos e temos que passar essa percepção exata de que a política é fora dos quartéis.”

O general disse que um dos principais trabalhos que precisa fazer é restabelecer a confiança no Exército. “Não que ela tenha sido perdida, mas buscando falar menos e agir mais, além de olhar para dentro – para as necessidades dos homens e mulheres que compõem a Força – e estando presente em todos os pontos, investindo nos projetos estratégicos para construir um Exército com mais tecnologia, capacidade dissuasória, melhorando o cumprimento de nossas funções constitucionais.”

O general observou que não faz sentido a discussão sobre o artigo 142 da Constituição porque não há nada no texto que enseje um poder moderador que seria exercido pelas Forças Armadas. “Não existe isso. Quem interpreta a Constituição, aqui no Brasil, é o Supremo Tribunal Federal.”

O general recebeu o Valor no Palácio Duque de Caxias, na região central do Rio de Janeiro, acompanhado por sua equipe de comunicação.

A seguir trechos da entrevista concedida ao Valor:

Valor: O artigo 142 da Constituição provocou muita polêmica no governo passado. Ele precisa ser revisto?

Paiva: Em todos os países, Forças Armadas são instituições de Estado, permanentes. Em nosso caso, nós não temos dúvidas de nossa missão constitucional. Ela é uma missão que foi escrita no texto da Constituição de 1988 e, desde lá, até hoje, a missão sempre foi bem cumprida. Se destinam à defesa da pátria, hoje, o principal papel é a dissuasão, você ter Forças Armadas capazes, eficazes, com papel efetivo de combate que impeçam que alguém tenha a ambição de ameaçar a soberania de outro país. Esse papel tem sido bem exercido.

Valor: Mas houve uma discussão recente de que a garantia dos Poderes constitucionais poderia ser algo que ensejasse um poder moderador.

Paiva: Não existe isso. Quem interpreta a Constituição aqui no Brasil é o STF, ele é o guardião da Constituição. Esse papel está bem definido. Nós não temos dúvida disso. Garantir os Poderes constituicionais significa você permitir o livre exercício dos Poderes que são harmônicos e independentes. Poder moderador tinha na Constituição de 1824, do Imperador. Agora, temos a Garantia da Lei e da Ordem (GLO), que foi uma ferramenta muito utilizada, desde 1985, várias vezes, em diversos governos, de ofício. Nunca um comandante do Exército determinou, sempre foi por determinação de um dos Poderes e por iniciativa do presidente da República.

Valor: Então o entendimento do texto constitucional é fácil?

Paiva: É fácil, o texto está bem escrito. Acredito que nós não temos dúvida sobre ele. É uma ferramenta que ajuda o Estado brasileiro a resolver eventuais problemas que possa vir a ter. Além disso, o Exército Brasileiro cumpre as missões constitucionais baseadas em lei complementar.

O Exército dos Estados Unidos jura a constituição, a gente jura a bandeira. Mas nós temos um compromisso perene com a Constituição que é total. Isso vou falar na minha ordem do dia amanhã [esta quarta]. Os Poderes no Brasil também não precisam de poder moderador, porque nós temos um sistema de freios e contrapesos que se modulam e se acertam. Esse é o sistema democrático. E a nossa democracia, de 1985 até hoje, tem dado exemplos de que tem sido capaz de superar suas crises com esse sistema de freios e contrapesos. Respeito as opiniões diferentes. Se em algum momento, nós formos chamados para participarmos da discussão, vamos nos pronunciar.

Valor: Essa parece que não era a interpretação do governo passado, que sempre tinha essa discussão e voltava a essa ideia...

Paiva: A interpretação do STF foi clara e deixou claro de que isso não existia.

Valor: Durante o governo passado se falou muito e se ameaçava com uma intervenção militar. Que intervenção seria essa? Haveria alguma condição no Brasil para isso?

Paiva: Não há nenhuma condição no Brasil para intervenção militar. Por quê? Porque isso não está previsto na Constituição. Todos nós temos que ser obedientes à Constituição. Então é simples. Não existe a intervenção porque ela não está na Constituição. Em hipótese alguma. A gente tem que se comunicar por atitudes. E nesse momento que a gente viveu, que foi o momento das manifestações na frente dos quartéis, que não cabia a nós dizer se era legal ou ilegal, porque quem diz é a Justiça. Agora tem a ordem de que as manifestações não podem ocorrer em frente às áreas militares. Não houve nenhuma atitude de apoio do pessoal de dentro dos quartéis de apoio ou interferência. Houve uma separação. E o que eles estavam pedindo, a intervenção militar não se podia fazer. Era inexequível. Nós mantivemos nossa atividade normal nos quarteis.

Valor: Já são 80 militares ouvidos nas investigações sobre o 8 de janeiro...

Paiva: Colaborar com as investigações é dever de todo cidadão. Não existe nenhum problema com isso. É dever de todo cidadão civil ou militar. Não é Comandante do Exército quem define que crime deve ser julgado onde. Crimes comuns são julgados na Justiça comum. Crimes militares, na Justiça militar. Tem uma tipificação. Quem define é a Justiça. O que cabe ao comandante do Exército é apurar a responsabilidade administrativa de agentes do Estado que estejam sob meu comando que tenham atuado de maneira errada. Mas para isso eu preciso em tese que tenham terminado as investigações na Justiça. Quando em um determinado tema há uma suspeição de crime, o rito é normal. Pode ser um inquérito policial militar, o juiz faz denúncia. Quem participou dos atos inaceitáveis destruiu o patrimônio, civil ou militar. Isso é crime comum.

General Tomas Paiva, comandante do Exército — Foto: Leo Pinheiro/Valor

Valor: Como reverter a politização das Forças Armadas?

Paiva: O que tratamos é de uma percepção de politização das Forças Armadas... Mas como é que vamos demonstrar? A gente tem que demonstrar através de atitudes e ações que não é isso. Nós tivemos alguns militares da ativa e da reserva que participaram do governo, é verdade. Se fizer uma análise, da ativa até foram poucos. Mas muitos da reserva. Terminou o tempo dele, não tem mais esse compromisso. Agora, o cara da ativa, não. Há iniciativas do Ministério da Defesa que estamos apoiando que a participação militar na política não é adequada porque nossa carreira é de dedicação exclusiva. Implica um compromisso, 24 horas, em atividade, essa é nossa realidade. Há dentro do estatuto dos militares uma possibilidade do cara da ativa que quer concorrer a um cargo eletivo. Ele pede uma licença, ele sai, concorre e se não for eleito, ele volta. Nossa proposta é que isso acabe. Se ele não ganhar, ele pede demissão. Não é nada nosso contra a política. A política é uma atividade fundamental, importante, sensível, a gente precisa que seja bem exercida o Brasil, até porque a política nos comanda e está sempre acima das forças militares. Mas a gente entende que não há como conciliar esse retorno da vida política com a normalidade da vida castrense. Até porque são poucas as pessoas que saem e são poucas as pessoas que se elegem. Se o camarada quer ser político, não tenho nada contra, mas ele que mude de profissão. As duas atividades não combinam. Não faz bem ao Exército se essa pessoa volta, filiada a um partido com um grupo de influência etc. São coisas separadas.

Valor: Isso foi muito misturado no governo passado?

Paiva: Sim e foi isso que passou a percepção de politização das Forças.

Valor: Mas não houve essa politização no governo Bolsonaro?

Paiva: Sim, mas nós somos apolíticos. Além de sermos apolíticos temos que passar essa percepção exata de que política é fora dos quartéis.

Valor: Bolsonaro usava muito a expressão ‘o meu Exército’. O Exército era de alguém?

Paiva: O Exército é de todos. O Exército é da nação brasileira.

General Tomas Paiva, comandante do Exército. — Foto: Leo Pinheiro/Valor

Valor: O senhor assumiu em um dos momentos mais conflagrados da história recente... O que tem sido mais difícil?

Paiva: Primeiro eu tenho profunda confiança no trabalho dos meus antecessores. Todo comandante do Exército é um continuador dos projetos que vem sendo feitos. Tenho 48 anos de carreira, então a gente já se conhece... Conhece suas possibilidades, suas limitações, nosso problemas, capacidades. O trabalho principal que eu acho que é preciso fazer é reestabelecer a confiança. Não que ela tenha sido perdida...mas buscando falar menos e agir mais. O Exército sempre cumpriu sua função constitucional na faixa de fronteira, protegendo a Amazônia, tem o apoio nos desastres e calamidades e isso vamos buscar cada vez mais.

Valor: Qual é o futuro que o senhor vê para o Exército?

Paiva: Nos baseamos em três grandes estratégias. A dissuasão – buscar uma força eficaz – capaz de dar uma resposta rápida a uma ação que o país precisa ter, equipamento, blindado, etc. helicóptero, radar, comando e controle cibernético. Segundo, a estratégia da presença. A gente ainda é um país com imensos vazios demográficos, onde o Exército ainda é a única instituição presente. Somos um país muito desigual. Social e regional. O Exército é uma ferramenta de integração. E a terceira é a colaboração: se colabora muito com o poder público, estradas, água, GLO. Incrementando essas ações e dando mais ênfase a elas.

Valor: Qual é sua opinião sobre as operações de GLO?

Paiva: Só a ação militar não resolve. Podemos estabilizar uma área, mas precisa vir o desenvolvimento. Nunca vai haver uma GLO de ofício. Vamos ser sempre demandados pelo nosso comandante supremo

General Tomas Paiva, comandante do Exército. — Foto: Leo Pinheiro/Valor

Valor: Por um tempo, pareceu que o Exército era só de alguns... não?

Paiva: Mas não foi. O Exército é plural, engloba gente de todas as regiões do Brasil. Eu enxergo o Exército como de todas as pessoas , de todos nós. O Exército é do morador de rua, da pessoa simples, do indígena, dos excluídos, dos que têm posses, dos estudantes. Mesmo que se possa ter uma percepção diferente, o Exército é de todos nós.

Valor: O senhor acha que o Ministério da Defesa está consolidado?

Paiva: Ele é jovem, mas está consolidado. Falta agora buscar eficiência através a intraoperabilidade. Porque os conflitos modernos multidomínio, multidimensão. Tem uma dimensão humana, informacional e física - aeroespacial, naval, terrestre. Ainda há poucos civis que se interessam pelos temas de defesa. Vamos sentar, discutir. São projetos que trazem desenvolvimento, traz tecnologias que podem ser usadas em outras áreas.

Valor: O Exército fez um investimento em sua própria imagem. Nestes últimos quatro anos, parece que o trabalho foi por água abaixo...virou o Exército da picanha, do uísque, dos altos salários...

Paiva: Em quatro anos não mudamos tanto assim, não nos transformamos em vilões. Ninguém é perfeito, nem nós. Mas temos uma característica: a de sermos rápidos, porque a gente é legalista, como a Marinha, a Força Aérea. Quanto à sazonalidade de termos um pouco mais ou menos de prestígio, a gente vai continuar trabalhando da mesma maneira, com respeito à Constituição, cumprindo nossas funções, respeitando os Poderes e a Constituição. Agora, as pessoas, por gestos e atitudes, vão identificar rapidamente que o compromisso do Exército é com seus valores, suas tradições, e com o país. Nós vamos seguir em frente. A nossa expectativa é que isso se reverta com o tempo.

Valor: Muitos estudiosos dizem que Bolsonaro resultou da vontade do Exército de se manter no Poder.

Paiva: Não é verdade. Esse fenômeno aconteceu em vários países do mundo . Tanto que nesse período as missões continuaram a ser cumpridas. Sei que há muita gente que acha que houve uma deliberação, uma conspiração a favor de A ou B. Tanto [não houve] que, novamente, por gestos e atitudes a gente está aqui. Houve a transição, a mudança de governo e a democracia está bem. Está plena.

Valor: Como é seu relacionamento com o presidente Lula?

Paiva: É como deve ser o relacionamento com o Comandante em Chefe. Ele me trata muito bem, sabe o que é ser o Comandante em Chefe.

Valor: Esses mesmos estudiosos, falam muito numa questão de tutela, como se a sociedade brasileira fosse ser tutelada pelo Exército.

Paiva: Tem essa ideia e muita gente acha que houve uma deliberação, uma conspiração a favor de A ou B. O Exército é parte da sociedade brasileira, com a Marinha e a Força Aérea prestam um papel relevante que lhe está determinado com a missão constitucional. E tudo que é feito está previsto na lei complementar.

Valor: Como o senhor vê essa palavra de ordem "sem anistia" que muitos repetem por causa dos ataques do 8 de dezembro?

Paiva: A ideia é que seja em relação àqueles atos. Eles são inaceitáveis. Prejudicaram a imagem do Brasil no exterior e estão sendo apurados para que não se repitam, com todos os direitos e garantias de cada uma, ampla defesa, contraditório e vão ser julgados e condenados quem tiver culpa. E o Brasil vai virar essa página e seguir em frente. O que não pode é acontecer de novo. Não vai acontecer de novo.

Valor: Este ano parece que houve uma determinação para que não ocorressem atos sobre 1964. Foi isso mesmo? Alguém reclamou?

Paiva: Volto a falar: o Exército não é uma instituição perfeita. Mas, na ativa, nossa missão está sendo cumprida e tenho total confiança na minha cadeia de comando, coesa, disciplinada. O pessoal de dentro é minha gente. Se tem alguém que tem dificuldade alguma medida estou pronto a esclarecer, por meio da cadeia de comando, vou procurar conversar. Sempre tem um ou outro que não vai concordar. Mas faz parte. Não se falou em 64 este ano porque também não se falou em 64 de 95 até 2002. Depois não se falou em 64 de 2007 até 2017. E todos esses companheiros estavam na ativa, muitos e ninguém falou nada. Assim, como não se fala de 30, de 37, de 45. A interpretação histórica pertence a história. 64 é a história.

https://valor.globo.com/politica/noticia/2023/04/19/a-politica-e-fora-dos-quarteis-afirma-comandante-do-exercito.ghtml

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