Golpismo de 22 faz da memória de 64 gênero de 1ª necessidade


Josias de Souza
Colunista do UOL
No 8 de janeiro de 2023, manifestantes bolsonaristas invadiram e depredaram o Congresso Nacional, o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal FederalFoto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
No 8 de janeiro de 2023, manifestantes bolsonaristas invadiram e depredaram o Congresso Nacional, o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal FederalFoto: Marcelo Camargo/Agência Brasil Imagem: No 8 de janeiro de 2023, manifestantes bolsonaristas invadiram e depredaram o Congresso Nacional, o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal FederalFoto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Costuma-se dizer que o Brasil é um país sem memória. Tomado pela posição passiva que adotou em relação ao golpe militar de 1964, que faz aniversário de 60 anos neste domingo, Lula gostaria que o brasileiro não tivesse nem mesmo curiosidade. "Faz parte da história", disse ele. "Não vou ficar remoendo, vou tentar tocar esse país para frente".

A memória é um mecanismo complexo. Para lembrar o essencial, convém esquecer o que é secundário. Não foi por outra razão que, num momento de rara inspiração, Joaquim Nabuco criou a Nossa Senhora do Esquecimento. Batizou-a em francês, como era comum aos intelectuais do seu tempo: "Notre Dame de I'Oublié".

O problema é que, a pretexto de contemporizar com as Forças Armadas, Lula esquece que a intentona de 8 de janeiro instilou na conjuntura algumas dúvidas incômodas. Por exemplo: qual é o prazo de vencimento de uma culpa histórica? Lula parece considerar que, em seis décadas, a conta já foi paga.

"Os generais que estão hoje no poder eram crianças naquele tempo. Alguns acho que não tinham nem nascido ainda naquele tempo", disse o presidente. Esqueceu de lembrar —ou lembrou de esquercer— que um pedaço das "minhas Forças Armadas" revelou-se mal-armada de institucionalidade diante do golpismo de Bolsonaro.

Quando João Goulart foi deposto, o general Marco Antonio Freire Gomes estava na bica de completar sete anos de idade. O brigadeiro Carlos Almeida Baptista Junior e o almirante Almir Garnier Santos eram duas crianças com quatro anos incompletos.

Freire e Baptista, então comandantes do Exército e da Aeronáutica, refugaram o decreto do golpe de Bolsonaro. Mas abstiveram-se de levar os lábios ao trombone. Ambos revelaram seus pendores legalistas apenas em depoimentos à Polícia Federal, depois que o delator Mauro Cid já havia jogado o golpismo no ventilador.


Garnier, então chefe da Marinha, fez pior. Segundo Freire e Baptista, o almirante colocou-se à disposição de Bolsonaro. De resto, formou-se ao redor do capitão um verdadeiro alto-comando do golpe. Frequentam o inquérito da PF de ponta-cabeça, por exemplo, os generais Braga Netto, Augusto Heleno e Paulo Sérgio Nogueira.

Como se tudo isso fosse pouco, o general Tomás Ribeiro Paiva, atual comandante do Exército, ainda deve ao país esclarecimentos sobre a investigação supostamente aberta para identificar os 46 oficiais da ativa que subscreveram uma carta em 2022 para pressionar Freire Gomes a aderir ao golpe contra Lula. Não há, por enquanto, vestígio de informação a respeito das punições.

A despeito de o golpe de 2022 não ter passado do estágio da tentativa, o que a legislação já tipifica como crime, a simples movimentação de Bolsonaro nos dias que precederam sua fuga para a Flórida dissipa a presunção de que, em sessenta anos, uma geração de fardados sucede a outra sem herdar nenhuma culpa.


O Datafolha também informou que, para sete em cada dez brasileiros (71%), a democracia é o melhor regime de governo. Entretanto, 18% declararam que não tanto faz se o regime é democrático ou ditatorial. Para 7% dos entrevistados, dependendo das circunstâncias, uma ditadura pode ser melhor que a democracia.

Ou seja: somando-se os indiferentes com os que flertam abertamente com o regime ditatorial, chega-se à espantosa constatação de que 25% dos brasileiros colocam em dúvida a máxima de Churchill segundo a qual a democracia é o pior regime imaginável com exceção de todos os outros. Para esse pedaço da sociedade brasileira, um simulacro de democracia ou uma ditadura genuína podem ser preferíveis à democracia de verdade.

O histórico do Datafolha mostra que o apreço pela democracia diminuiu desde as eleições presidenciais de 2022. Em outubro daquele ano, 79% dos entrevistados enxergavam a democracia como o melhor regime. Em outubro, o percentual caiu para 74%. Agora, 71%, No mesmo período, aumentou a indiferença em relação ao regime democrático: 11%, 15% e, agora, 18%. A preferência pela ditadura oscilou para o alto: 5% em outubro do ano eleitoral, 7% nas duas pesquisas seguintes.

A deposição de João Goulart, como se sabe, recebeu o apoio de vários setores da chamada sociedade civil —do empresariado à imprensa. O suporte material dado por setores do ogronegócio ao acampamento que pedia intervenção militar na frente do QG do Exército revelou que Bolsonaro também não estava sozinho nos seus delírios golpistas.

Os devotos do bolsonarismo que encheram sete quadras de asfalto na Avenida Paulista no último dia 25 de fevereiro também demonstraram que um naco nada negligenciável da sociedade continua compartilhando das hesitações de Bolsonaro sobre de que lado da Terra Plana seria mais conveniente saltar.


Por todas as razões, a passividade de Lula diante da efeméride deste domingo é um clamoroso equívoco. Vivo, Nabuco decerto diria que o golpe militar de 1964 jamais pode ser acomodado no altar de Nossa Senhora do Esquecimento. Muito menos num domingo de Páscoa. O conceito de ressurreição não orna com falta de memória.

Seis décadas não foram suficientes para tornar todo mundo inocente. Nem mesmo os ressentimentos prescreveram. É grande, de resto, o número de sentenças criminais graúdas esperando na fila do Supremo Tribunal Federal para acontecer.

A tentativa de golpe de 2022 rejuvenesceu, por assim dizer, a memória do 31 de março de 1964, transformando-a em gênero de primeira necessidade. Conforme o pente-fino do Datafolha, a maioria dos brasileiros (53%) descarta a hipótese de volta da ditadura. Bom, muito bom, ótimo. Mas, desde a redemocratização, nunca estivemos tão perto de um retrocesso como em 2022. Melhor não facilitar.

Opinião

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