Tese impossível para Bolsonaro; a ILEGÍTIMA defesa; outra aberração da PGR

Reinaldo Azevedo
Colunista do UOL


Carla Zambelli empunha arma um dia antes da eleição; a Constituição e Jair Bolsonaro, o indefensável com direito de defesa. Afinal, a democracia venceu
Carla Zambelli empunha arma um dia antes da eleição; a Constituição e Jair Bolsonaro, o indefensável com direito de defesa. Afinal, a democracia venceu Imagem: Reprodução; Evaristo Sá/AFP; Reprodução

Papel da defesa é defender, mesmo quando a tese é furada. Melhor termos um sistema de garantias em que os advogados podem testar teses a um outro em que determinados indivíduos não tivessem defesa. Felizmente, Jair Bolsonaro perdeu a eleição, e a tanto não chegaremos.

Seus defensores no caso da mercancia de joias, sob a liderança de Paulo da Cunha Bueno, devem dizer que a Lei 8.394/91 e o decreto que a regulamentou, o 4.3442002, autorizam o presidente a incorporar presentes a seu patrimônio. Assim, pretendem ignorar decisão do TCU de 2016, que fez clara distinção entre o que é realmente um mimo de caráter pessoal dado ao chefe de Estado do Brasil por país estrangeiro e o que deve permanecer sob a guarda da Presidência da República.

Pretende-se, assim, negar o crime principal de que Bolsonaro é acusado: peculato. É a melhor saída de que dispõe Cunha Bueno porque é a única. Mas também muito fraca. A lei — e, por consequência, o decreto — dispõe sobre "a preservação, organização e proteção dos acervos documentais privados dos presidentes da República". Relógios Rolex, Patek Philippe e colares de diamantes não se parecem exatamente com "acervos documentais", não é mesmo?

Transcrevo trecho do Acórdão do TCU
"determinar à Secretaria de Administração da Presidência da República e ao Gabinete Pessoal do Presidente da República que:

incorporem, com fulcro no art. 3º, parágrafo único, inciso II, do Decreto 4.344/2002, ao patrimônio da União todos os documentos bibliográficos e museológicos recebidos pelos presidentes da República, nas denominadas cerimônias de troca de presentes, bem assim todos os presentes recebidos, nas audiências com chefes de Estado e de Governo, por ocasião das visitas oficiais ou viagens de estado ao exterior, ou das visitas oficiais ou viagens de estado de chefes de Estado e de Governo estrangeiros ao Brasil, excluídos apenas os itens de natureza personalíssima ou de consumo direto pelo Presidente da República;
(...)
recomendar à Casa Civil que promova estudos para aperfeiçoar a legislação que regulamenta os acervos documentais privados dos presidentes da República, para deixar assente os motivos e as excepcionais ocasiões em que os documentos bibliográficos e museológicos, recebidos pelo Presidente da República, no exercício dessa função devem ser de sua propriedade, permanecendo todos os demais presentes - incluídas as obras de arte e os objetos tridimensionais - como bens públicos, sob a guarda da presidência da República;"

Fim de papo. Não só os documentos propriamente que são do interesse do país como os presentes — e se destacam ali os "objetos tridimensionais" — devem ficar sob a guarda da Presidência. Não podem ser passados nos cobres para enriquecer o governante ou ex-governante.

Ademais, ainda que os objetos milionários tivessem realmente sido dados de presente a Bolsonaro, ele deveria tê-los declarado à Receita quando chegaram ao Brasil para recolher o imposto correspondente, ou o que se tem é crime de descaminho, conforme Artigo 334 do Código Penal: "Iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria". No caso do descaminho, note-se, a agressão à lei se teria dado na entrada e na saída — na hipótese de não ser o que parece ser: peculato.

Certamente não escapará á Justiça a contradição óbvia entre defender o direito que Bolsonaro teria de dispor como quisesse daqueles bens e a tese de que não foi ele a ordenar que Mauro Cid, seu ajudante de ordens, os vendesse. Ou se pretende sustentar que ele poderia vendê-los se fosse seu desejo — e foram efetivamente vendidos —, mas a decisão foi tomada pelo ordenança?

Tenho muitos amigos criminalistas. A vida deles nunca é fácil. Mas, em certos casos, é mais difícil.

A LEGÍTIMA DEFESA PELAS COSTAS
Por nove votos a dois, o STF acatou denúncia contra a deputada Carla Zambelli (PL-SP) por porte ilegal de arma e constrangimento ilegal com uso de arma de fogo no episódio em que saiu pelas ruas de São Paulo, na véspera do segundo turno, empunhando uma arma, no encalço do jornalista Luan Araújo, que a teria ofendido.

Trata-se de uma das cenas mais marcantes da eleição do ano passado. Todos viram esta senhora correr atrás de Luan, acompanhada de um segurança, também armado, até acuá-lo num bar. Numa entrevista à época, chegou a alegar que tinha sido fisicamente agredida. Um vídeo provou que caíra sozinha. A lei proíbe o porte de arma na véspera de eleição mesmo àqueles que têm licença — a exceção são as forças de segurança.

André Mendonça não descartou a denúncia, mas avaliou que o foro não é o Supremo. Discordo radicalmente da opinião, mas vá lá... Há um suporte de, entendo, falsa racionalidade que a sustenta. Nunes Marques, no entanto, deu um voto assombroso. Segundo ele, uma vez ofendida, foi legítima a tentativa de Zambelli de prender Araújo.

Vamos ao que diz o Artigo 25 do Código Penal:
"Art. 25 - Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem."

Matar alguém que lhe bateu a carteira, leitor, não implica legítima defesa porque, por óbvio, tirar a vida de alguém não parece "uso moderado dos meios necessários" para recuperar a dita-cuja, não é mesmo?

Notem que o texto fala em "agressão atual ou iminente". Ainda que a deputada tivesse mesmo sido alvo de ofensas, perseguir alguém em fuga, com arma em punho, retira a "atualidade" e, por óbvio, descarta a "iminência" do ato, que só se daria no futuro. Não custa lembrar que o tal segurança chegou a dar um tiro durante a perseguição.


Uma pergunta a Nunes Marques: se Zambelli tivesse disparado e matado Luan pelas costas, seria só um acidente não doloso dentro de uma reação legítima?

PGR E OS GOLPISTAS
Acho indecente qualquer acordo de não persecução penal com pelos menos 1.156 réus que participaram de atos golpistas, presos no dia 9 de janeiro. Estes são os acampados ao lado do QG do Exército e que não teriam participado do ataque às respectivas sedes dos Três Poderes. Acusados de incitação ao crime e associação criminosa, as imputações renderiam menos de quatro anos de reclusão se condenados.

No caso de um acordo, poderiam ser proibidos por um tempo de participar das redes sociais. E não perderiam a primariedade.

A extrema-direita, que precisa de mártires, mesmo que sejam estes, já criticou a possibilidade. Pois é... Eu também acho uma aberração. E por razões distintas. Os tarados acham que a condenação provará que se vive num estado totalitário, e os bananas seriam os mártires. Penso o exato oposto: os vândalos precisam ser condenados para que percebam — e para que se perceba — que a democracia existe.

Até parece que a ausência de pessoas irrelevantes nas redes servirá como resposta à cidadania ofendida e agredida pelos criminosos. Acordo uma ova! Tivessem vencido, eles nos ofereceriam o paredão. Mas perderam. O mínimo que podemos fazer é lhes oferecer a lei.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL. 

OLHAR APURADO

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https://noticias.uol.com.br/colunas/reinaldo-azevedo/2023/08/22/tese-impossivel-para-bolsonaro-a-ilegitima-defesa-e-outra-aberracao-da-pgr.htm

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