Os fatos desconstroem o que resta de Bolsonaro. E os R$ 14 mil na Mega-Sena


Reinaldo Azevedo
Colunista do UOL
Bolsonaro se atrapalha com a máscara em março de 2020, durante entrevisa coletiva para anunciar medidas contra a covid. Era só o começo de uma sequência de desastres e do morticínio
Bolsonaro se atrapalha com a máscara em março de 2020, durante entrevisa coletiva para anunciar medidas contra a covid. Era só o começo de uma sequência de desastres e do morticínio Imagem: Adriano Machado/Reuters

Jair Bolsonaro, por tudo o que diz e faz, é, sem dúvida, o líder da extrema-direita brasileira. Mas sempre estive convicto, e não escrevo o que vai agora tentando diminuir a fealdade moral de tal figura, de que nem ele mesmo acredita em tudo o que diz. Não por bondade. Não é bom. Já se mostrou bastante perverso. O sujeito percebeu que havia mercado para a parolagem estúpida e brutalista. E a ela se dedicou por senso vulgar de oportunidade e falta de escrúpulos. Isso lhe garantiu e à família votos, dinheiro, acúmulo de bens etc. É claro que não apostava que pudesse chegar tão longe. Isso só aconteceu com a cortesia da Lava Jato e do pedaço da imprensa que puxou o saco da operação. Pistoleiros da força-tarefa, note-se, ainda estão por aí, disfarçados de jornalistas. Adiante.

Falta ao fanfarrão alcance teórico mesmo para as monstruosidades da extrema-direita fascistoide que o tem mais como símbolo do que como guia. Parece gostar mais de dinheiro do que de ideologia, e esta é só um instrumento para obter aquele. E sempre foi assim. A "ficha de informações" sobre o seu desempenho do Exército apontava em 1983, quando ele tinha 28 anos: "Deu mostras de imaturidade ao ser atraído por empreendimento de 'garimpo de ouro'." E ainda: "Necessita ser colocado em funções que exijam esforço e dedicação, a fim de reorientar sua carreira. Deu demonstrações de excessiva ambição em realizar-se financeira e economicamente".

Foi um mau militar, como definiu Ernesto Geisel. Mas não há dúvida de que se realizou financeiramente. É hoje um homem de muitos milhões.

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Uma vez no cargo, é evidente que se organizou para dar um golpe de Estado. É possível que tivesse em mente alguma prefiguração reacionária. Mas ela pode ter contado menos do que seu escancarado oportunismo. Ocorre que aquele tenente ambicioso constatou que a Presidência lhe oferecia o escudo da inimputabilidade quase absoluta. E aí se fazia necessário afastar os empecilhos que poderiam apeá-lo do poder. Não deu certo. Mas observem: o homem nunca se descuidou do caixa. Mesmo quando simulava estar apenas numa cruzada moral e patriótica.

Um dado em particular sempre me intrigou: aproximou-se dos evangélicos linha-dura. Fala em nome dos valores das correntes menos arejadas de uma miríade de denominações que se querem cristãs, mas nunca se declarou um convertido. Como não parece ser alguém particularmente afeito a relevâncias teológicas e ao cultivo espiritual — seu vocabulário, mesmo na chefia do governo, era assombroso —, infiro que resistiu à conversão porque esta lhe imporia alguma disciplina.

É claro que há os que levam a sério a fé, mas também não é raro que os mercadores do divino mostrem suas garras na vida pública. Mesmo a heterodoxia cristã em que se dá a mercancia pareceu disciplina excessiva para o "Mito", que não consegue nem mesmo simular alguma contenção.

MEGA-SENA?
Como sabem, apontei desde sempre que estava mal contada a história dos R$ 17,2 milhões que recebeu via Pix. A justificativa dos fanáticos é que seus partidários resolveram lhe fazer doações para pagar multadas judiciais. Como a chave da sua conta só foi divulgada no dia 23 de junho e como aquele valor fabuloso teria sido depositado no primeiro semestre, até 4 de julho, observei o óbvio: então as doações teriam sido feitas em meros 12 dias. Pode até ser... Mas só um tonto não desconfia. Mais: ele passou três dos seis meses homiziado em Orlando.

Agora sabemos que o Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) aponta muitas operações consideradas atípicas, com doações de centavos — sim, até de um centavo! Observei aqui há tempos que seria preciso investigar se o Pix não estava sendo usado para lavagem de dinheiro. Como se fizeram mais de 760 mil operações, parecia razoável a aposta de que a Justiça não iria quebrar o sigilo de toda essa gente. E permanece minha questão: quanto dinheiro entrou na conta antes da divulgação da chave?

Já se sabe que o chefe do clã repassou dinheiro para familiares. Nesta segunda, ele mesmo alegou ter gastado "mais ou menos 17 mil, se não me engano" em, pasmem!, jogos na Mega-Sena. E tudo teria sido feito na lotérica de um sobrinho. Disse depois em rede social que destinou R$ 14.268,04 às apostas. E se explicou assim:
"Eu jogo na Mega-Sena, estou em casa, ligo para ele [o sobrinho], 'repete o número'. Se vocês pegarem os valores de 17 PIX, um a um, são múltiplos de jogos de sete dezenas da Mega Sena. Agora está em R$ 35 o jogo de sete números".

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Mais um pouco, ele emula com um famoso "anão do Orçamento" (pesquisem) e ainda tenta nos convencer de que a dinheirama de que desfruta deriva de loterias...

Ainda que essa fosse a toda a verdade, eu me pergunto: que tipo de gente sente satisfação em doar dinheiro a um líder, que estaria sendo perseguido, para que este confesse depois ter torrado mais de R$ 14 mil jogando na Mega-Sena? Eis o grande líder da direita.

VOCAÇÃO PARA MUAMBEIRO
Também já se sabe que o tenente-coronel Mauro Cid, o onipresente, resolveu passar nos cobres um Rolex, com diamantes, que o chefe ganhou do rei da Arábia Saudita. Pediu US$ 60 mil pelo brinquedo. Não há uma terceira opção: se o presente era pessoal, deveria ter recolhido o imposto quando entrou no país com o objeto. E então teria cometido crime de sonegação. Mesmo sendo um mimo ao chefe de Estado do Brasil, tentou vender em proveito próprio um bem público. Estão caracterizados crimes de peculato e de desvio.

Tínhamos no comando do país alguém que se comportava como um muambeiro de artigos de luxo. Não há mistério, até onde se sabe, sobre a origem da joia que Cid tentou vender. Mas há um outro dado intrigante.

Mensagens trocadas entre membros da ajudância de ordens informam que o chefe de Mario Cid ganhou pedras preciosas "de presente" (?) durante visita a Teófilo Otoni, em Minas. Sim, ele admitiu. Mas afirmou que são pedras semipreciosas, que valem R$ 400. E não quis mais tratar do assunto. É mesmo? Seus bravos resolveram trocar mensagens por causa de alguns brilhalecos de pouco valor?

CARLA ZAMBELLI
O "Não-Estupraria-Porque-Não-Merece" também viu explodir o caso Carla Zambelli. Há, quando menos, fortes indícios de que a deputada (PL-SP) contratou Walter Delgatti Neto para invadir o sistema do Conselho Nacional de Justiça, o que efetivamente aconteceu. E lá se plantou, como sabem, uma falsa ordem de prisão contra o ministro Alexandre de Moraes, do STF. Ocorre que isso foi, assim, um brinde nessa relação. A deputada levou o "hacker" para falar com o presidente do PL, Valdemar Costa Neto -- que se faz de esfinge agora --, e com o então chefão da República.

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Segundo a parte conhecida do depoimento de Delgatti, o interlocutor lhe perguntou se tinha como invadir uma urna eletrônica, uma vez que o código fonte era conhecido. E teria ouvido ser isso impossível porque, para tanto, precisaria operar na sede do TSE, o que era impossível, já que o sistema não usa a Internet.

DOCUMENTOS DA ABIN
Um outro pedaço do passado recente de Imorrível o atropela: os documentos produzidos pela Abin sobre a covid-19. Resta, agora, claríssimo que, também nesse caso, ele ignorou todos os alertas sobre os riscos que a pandemia representava.

Nunca lhe faltaram, portanto, nem o aporte da ciência nem as avaliações próprias de uma atividade de Inteligência para fazer as boas escolhas. Se querem saber, até me surpreendi com a qualidade do material que foi produzido. Não obstante, o celerado estava tão obcecado pela ideia de que as medidas de distanciamento social buscavam inviabilizar o seu governo que se lançou numa cruzada inequivocamente homicida.

Os alertas que o bom conhecimento científico fez então àquele que deveria comandar a cruzada contra a doença lhe foram reiterados em linguagem de Inteligência. Mesmo assim, escolheu o caminho que nos levava à terra dos mortos. Ao fazê-lo, cometeu uma penca de crimes.

CONCLUO
Bolsonaro assumiu uma persona política compatível com o seu senso moral e seu padrão ético, ambos muito rebaixados. Não dispõe nem mesmo de uma utopia regressiva porque esta faria supor alguma vida intelectual ativa, ainda que para pensar coisas detestáveis.

Os Pix de R$ 17 milhões; as supostas apostas de mais de R$ 14 mil na Mega-Sena; o escândalo das joias; a tentativa de passar nos cobres o Rolex; a conversa com o "hacker" para saber se era possível invadir a urna; as provas de que ignorou também os alertas da Abin em sua guerra insana contra os fatos e em sua aposta na necropolítica... O conjunto demonstra, enfim, um período de desastre e de danação. Não por acaso, os eventos de 8 de janeiro, já no novo governo e sob a inspiração do Biltre, eram o bramido do abismo a tentar tragar a esperança.

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Ele tem de pagar por tudo o que fez. De acordo com as regras do jogo.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.


OLHAR APURADO

Uma curadoria diária com as opiniões dos colunistas do UOL sobre os principais assuntos do noticiário.https://noticias.uol.com.br/colunas/reinaldo-azevedo/2023/08/08/os-fatos-descontroem-o-que-resta-de-bolsonaro-e-os-r-14-mil-na-mega-sena.htm

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