Auxílio-moradia e bônus extinto rendem salários de até R$ 1,5 mi a juízes

Levantamento do UOL nas folhas de pagamento dos 92 tribunais do Judiciário mostra que os chamados "penduricalhos" —remunerações extras como pagamentos retroativos de adicionais por tempo de serviço e de auxílios-moradia— renderam salários mensais de até R$ 1,5 milhão a magistrados no ano passado.
Do que são feitos os 'supersalários'
O UOL identificou nove contracheques de salário mensal superiores a R$ 1 milhão, em valores brutos, pagos a juízes e desembargadores em dezembro e janeiro de 2022. São as maiores remunerações pagas a magistrados nos últimos três anos. Desde 2020, mais de 30 mil salários superaram R$ 100 mil —eles são 3% do total de holerites, mas equivalem a mais de 10% dos pagamentos feitos pelos tribunais (R$ 4,7 bilhões).
Os salários milionários foram pagos a juízes e desembargadores —atualmente aposentados— do TJ-RO (Tribunal de Justiça de Rondônia), da Justiça Federal do Ceará e de Pernambuco e do TRF-4 (Tribunal Regional Federal da 4ª Região), em Porto Alegre (RS).
TJ-RO no topo do ranking. Seis dos maiores salários chegaram à casa do milhão devido ao pagamento de auxílio-moradia retroativo aos anos de 1987 a 1993 na Justiça de Rondônia —isto é, há mais de 30 anos. Os valores foram pagos entre 2016 e 2022.
Benefício vetado. O CNJ (Conselho Nacional de Justiça) proibiu em 2018 que os tribunais pagassem auxílio-moradia retroativo. O TJ-RO alega, contudo, que os pagamentos foram definidos por acordos judiciais anteriores a essa decisão.
Bônus extinto. Os outros três contracheques milionários foram turbinados por adicionais por tempo de serviço, como o quinquênio. O bônus retroativo —extinto pela reforma previdenciária de 2003— foi pago, contudo, a esses magistrados antes de abril, quando o CNJ e o TCU (Tribunal de Contas da União) suspenderam os repasses na Justiça Federal.
O UOL fez a análise a partir de salários brutos publicados no Painel de Remunerações de Magistrados, do CNJ, entre janeiro de 2020 e abril deste ano. Para isso, descontou indenizações, diárias e o chamado abate-teto (desconto feito no contracheque para não superar o teto constitucional do Judiciário, de R$ 41.650,92).
Por que esses salários extrapolam o teto. Os contracheques milionários são até 35 vezes maiores que o teto constitucional, que é baseado nas remunerações dos ministros do STF. O auxílio-moradia não é descontado no abate-teto —valores subtraídos do contracheque para manter o salário no limite estabelecido por lei—, e tribunais entendem que pagamentos retroativos também podem extrapolar o limite.
Procurados, os tribunais dizem que as verbas retroativas que inflaram os contracheques milionários são legais.
'Eu não jogo dinheiro fora, não'
O desembargador aposentado Gabriel Carvalho, dono do terceiro maior contracheque desde 2020 (R$1,18 milhão, em valores brutos), define como "justo" o pagamento do auxílio-moradia retroativo.
Ajuda bem, é claro. Não vinha dependendo disso porque a gente se acostuma a viver com o pouco. Já gastei [risos]. Foi bem-vindo. Eu quitei uma coisinha. Comprei um imovelzinho aqui, tá certo? Reformei um apartamentinho. Eu não jogo dinheiro fora, não.Gabriel Carvalho, desembargador aposentado do TJ-RO
Questionado pelo UOL sobre os salários dos magistrados tendo em vista a desigualdade social no país, o desembargador defendeu que as remunerações da categoria seguem critérios justos. "Ser magistrado é para fazer justiça no processo que ele atende para os demais, mas ele também quer justiça para os seus direitos."
Radicado em São Paulo, Carvalho entrou no TJ-RO em 1982, logo após a criação do estado de Rondônia, e se aposentou em 2010. Ele diz que, naquela época, o governo estadual não pagou várias verbas aos servidores, as quais foram se acumulando.
O UOL tentou contato com os dois magistrados que receberam os maiores contracheques, mas não os localizou por meio de telefones e e-mail.
Auxílio-moradia de mais de 30 anos
O que é auxílio-moradia. É um benefício oferecido a magistrados para ajudar a custear despesas como aluguel, financiamento habitacional, moradia ou estadia quando o servidor está exercendo suas funções em locais diferentes da residência permanente. Em 2018, o CNJ determinou que o benefício seja de, no máximo, R$ 4.377,73.
O TJ-RO pagou o auxílio-moradia retroativo a 150 magistrados durante sete anos após acordo avalizado pelo STF. O tribunal não informou o gasto total com esses pagamentos. O custo foi de R$ 168,4 milhões entre 2016 e 2018 e em janeiro de 2022, segundo a Agência Lupa e o TJ-RO.
Os pagamentos estavam sendo feitos de forma parcelada, mas, em janeiro de 2022, o tribunal pagou dez prestações à vista —esse pagamento fez com que seis holerites do Judiciário de Rondônia superassem R$ 1 milhão. Segundo o tribunal, o pagamento à vista reduziu despesas com juros e correções monetárias, rendendo uma economia de R$ 5,8 milhões.

Em 2014, uma decisão do ministro do STF Luiz Fux fez os gastos com auxílio-moradia explodirem: ele determinou que até mesmo magistrados que não gastavam com residências provisórias recebessem R$ 4.000 de auxílio-moradia todos os meses.
Foi neste contexto que o TJ-RO fechou o acordo com os 150 magistrados, cuja negociação foi avalizada pelo próprio Fux à época. Pelo acordo, os pagamentos seriam feitos em 60 meses (cinco anos), com 0,5% de juros por mês e mais a correção monetária. "Todos os pagamentos efetuados pelo TJ-RO estão devidamente baseados em decisões", afirmou o tribunal, por meio de sua assessoria de imprensa.
Os magistrados alegaram que, a partir de 1987, o TJ-RO interrompeu o pagamento do auxílio-moradia, pagou valores menores que o devido e ainda cortou parte dos salários para se adaptar ao teto constitucional. Por isso, eles exigiram as diferenças não pagas.
O auxílio-moradia estendido a toda magistratura por Fux durou até 2018, quando o CNJ o proibiu. A decisão custou R$ 3,5 bilhões aos cofres públicos.

Quinquênios foram autorizados, dizem TRFs
Os tribunais regionais federais da 4ª e 5ª regiões defenderam o pagamento de quinquênios retroativos aos quatro magistrados com remunerações entre R$ 973 mil e R$ 1,3 milhão, em valores brutos.
Sílvia Gorayeb, desembargadora aposentada do TRF-4. "O pagamento do passivo de ATS [adicional por tempo de serviço] aos magistrados foi em cumprimento à decisão do CJF [Conselho da Justiça Federal]", diz o tribunal. O TRF-4 também afirma que Gorayeb é pensionista e que, portanto, "tem direito aos valores devidos ao falecido marido". O tribunal rejeitou pedido do UOL para esclarecer valores no contracheque da desembargadora.
Abdias Oliveira e Francisco Chagas, juízes aposentados da Justiça Federal do Ceará. "Todos os pagamentos foram autorizados pelo CJF e pelo CNJ", destacou a assessoria do TRF-5. O CNJ suspendeu os pagamentos quatro meses depois. "Os pagamentos retroativos correspondem ao percentual de 50% do valor devido, relativos ao período de junho de 2006 a dezembro de 2022. São referentes aos ATSs incidentes sobre a remuneração ou subsídio, sobre o 13º [salário], o adicional de férias e a ajuda de custo do mesmo período."
Edwiges Caraciolo, juíza aposentada da Justiça Federal de Pernambuco. "Portadora de doença grave, recebeu 50% do total do passivo do adicional por tempo de serviço, conforme autorização do CNJ e do CJF, em que foi determinado o restabelecimento dos ATSs [adicionais por tempo de serviço] a alguns magistrados", disse o TRF-5, que abrange as varas federais de Pernambuco.
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