Carta ao Google: assuma sua responsabilidade pela democracia

 


Jamil Chade - 

Colunista do UOL

07/05/2023 05h34


Esta é a versão online da newsletter do Jamil Chade enviada ontem (06). 

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Prezados,

Há uns anos, numa visita que fiz a teólogos na cidade alemã de Wittenberg, fiquei com a impressão de que Martinho Lutero, em nossos dias, teria sido um fervoroso usuário dos novos instrumentos de comunicação.

O que eclodiu em 31 de outubro de 1517 foi, em grande parte, resultado de uma nova tecnologia para a disseminação de informação e ideias: a imprensa. Aquele ato resultou, há mais de 500 anos, num racha da Igreja e revoluções no comportamento da sociedade. O mundo jamais foi o mesmo.

Hoje, vocês são a nova revolução e alimentam alguns dos mais antigos sonhos da humanidade: se conectar, combater a repressão, ter acesso ilimitado ao conhecimento e reduzir até mesmo as distâncias.

Mas junto com essa explosão inovadora, veio uma profunda transformação na relação de poder na sociedade. Numa só entidade, vocês operam como imprensa, detém e vendem nossos dados, constroem ou matam tendências de consumo e, muitas vezes sem nosso conhecimento, nos levam a caminhos desconhecidos. Tudo isso sem qualquer regulação e com um caixa equivalente aos maiores bancos do mundo.

Se a Internet é inegavelmente um instrumento com o potencial para desafiar ditaduras e romper monopólios de poder, descobrimos que, sem lei, hoje vocês são atores políticos capazes de decidir uma eleição, iniciar uma revolta ou moldar o sentimento nacional. Ao contrário da promessa original, o que vemos é que essa nova tecnologia promoveu uma concentração de poder raramente vista na história da humanidade.

Uma parte importante de seus recursos tem sido destinada a investigar, internamente, como construir as plataformas, editar as notícias e selecionar vídeos no Youtube que mantenham por mais tempo possível o consumidor em suas redes. Quanto mais radical o conteúdo, maior o engajamento, mesmo que seja mentira ou ódio. Quanto maior o engajamento, maior a receita.

Mas não nos enganemos sobre o que está em debate aqui: como viciar o indivíduo do outro lado da tela, mesmo que o preço a ser pago seja o adoecimento de toda uma sociedade.

Sabe quem já fez isso no passado? A indústria do cigarro. Eles também sabiam quais seriam as consequências para a saúde.

É uma questão de lucro, vocês diriam. De fato, se fosse um país, a capitalização de mercado da Alphabet - a empresa mãe do conglomerado e cujo nome é revelador do papel que vocês se atribuem - colocaria a empresa no G20. Seu "PIB" é maior hoje que as economias da Coreia do Sul, Austrália e Espanha. E muito próximo ao que seria o PIB do Brasil ou Rússia.

O lobby político feito por vocês também atingiu um patamar novo, como vimos recentemente no Brasil. Nos EUA, a atuação no Congresso e no Executivo é permanente. Em 2022, vocês ainda doaram US$ 8 milhões para campanhas eleitorais, o que coloca a empresa como a 41a maior doadora de recursos. No ciclo eleitoral de 2020, doações de US$ 21 milhões foram feitas durante a campanha presidencial.

Enfim, vocês se transformaram num ator político fundamental no século 21 e, portanto, escrevo esta carta para fazer um pedido: assumam suas responsabilidades na defesa da democracia.

Abram seus dados e aceitem uma regulação para que o mundo saiba como as sociedades são impactadas pelo fluxo de informação e desinformação, como são aprofundadas as divisões na sociedade, como eleições são definidas em máquinas distantes da urna.

Abram seus dados e permitam que a democracia possa ser protegida, antes que seja tarde demais.

Vocês precisam optar: se querem editar as notícias que publicam para que mantenham o consumidor por mais tempo em suas páginas, precisam ser responsabilizados por isso.

Em nome da tal liberdade, plataformas foram fundamentais na limpeza étnica em Mianmar. E se um dia vocês deliberadamente apoiarem um lado em uma guerra, sem que saibamos? Ou será que já fazem isso?

A democracia morre no escuro e em plena luz do dia. Ela morre e pode ser assassinada. Num beco de uma rua, na rachadura de uma barragem, num barulho de uma serra numa floresta, na falta de um leito, num envelope com dinheiro ou no medo de andar de mãos dadas. E é nosso papel permitir sua sobrevivência. Todos os dias.

Mas ela também morre quando a concentração de poder é de tal dimensão que um só ator tem, em suas mãos, o mapa do destino daquela sociedade.

Assumam sua responsabilidade, antes que seja tarde demais.

Saudações democráticas,

Jamil

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https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2023/05/07/carta-ao-google-assuma-sua-responsabilidade-pela-democracia.htm

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