Lei de proteção de dados vai mudar cotidiano de cidadãos e empresas -
A nova lei geral de proteção de dados pessoais,
aprovada terça-feira (10) pelo Senado, colocou o Brasil ao lado de
dezenas de países que já têm legislação sobre o tema, como as nações
europeias e boa parte da América do Sul. Ao estabelecer direitos e
responsabilidades, a lei vai trazer também impactos no cotidiano dos
cidadãos, de empresas e dos órgãos públicos. O texto ainda precisa ser
sancionado pelo presidente Michel Temer, e as novas regras só vão entrar
em vigor daqui a um ano e meio.
O texto define dados pessoais como informações que podem identificar
alguém (não apenas um nome, mas uma idade que, cruzada com um endereço,
possa revelar que se trata de determinada pessoa). Além disso,
disciplina a forma como as informações são coletadas e tratadas em
qualquer situação, especialmente em meios digitais. Estão cobertas
situações como cadastros ou textos e fotos publicados em redes sociais.
A nova regra também cria o conceito de dados sensíveis, informações
sobre origem racial ou étnica, convicções religiosas, opiniões
políticas, saúde ou vida sexual. Registros como esses passam a ter nível
maior de proteção, para evitar formas de discriminação. Esse tipo de
característica não poderá ser considerado, por exemplo, para
direcionamento de anúncios publicitários sem que haja um consentimento
específico e destacado do titular. Já registros médicos não poderão ser
comercializados.
Se sancionada, a lei valerá para atividades e pessoas em território
nacional, mas também para coletas feitas fora, desde que estejam
relacionadas a bens ou serviços ofertados a brasileiros. Um site
que vende pacotes de viagens com conteúdo em português e ofertas para
brasileiros teria as mesmas responsabilidades de uma página sediada no
país.
Finalidade específica e consentimento
O uso de dados não poderá ser indiscriminado, mas para uma finalidade
determinada. Um prédio que solicite nome dos pais de alguém para acesso
ao local, por exemplo, pode ser questionado. Os “testes de
personalidade”, como o aplicado no Facebook que originou o vazamento de
dados de 87 milhões de pessoas, usados pela empresa Cambridge Analytica,
inclusive para influenciar eleições, são outro exemplo.
“As empresas vão ter de justificar o tratamento de dados o que pode
fazer com que, em alguns casos, eles não precisem ser usados. Isso tende
a racionalizar a coleta e o uso de dados, seja porque a lei pode
proibir ou porque ele não vai valer a pena por gerar risco pouco
razoável”, comenta Danilo Doneda, especialista em proteção de dados e
consultor que participou ativamente do processo de discussão da lei.
Além de uma finalidade específica, a coleta só pode ocorrer caso
preencha requisitos específicos, especialmente mediante autorização do
titular (o chamado consentimento). Ou seja, o pedido de permissão (por
exemplo, ao baixar aplicativos) passa a ser a regra, não um favor das
empresas. “Por um lado, caminhamos, portanto, no sentido de minimizar a
produção de dados que podem ser considerados excessivos para a prestação
dos serviços. O que, diante dos inúmeros incidentes de vazamento de
dados que vemos a cada semana, é também uma forma de segurança”, avalia
Joana Varon, da organização de direitos digitais Coding Rights.
Se o titular consentir ao aceitar as “regras” em redes sociais, os
chamados “termos e condições” usados por plataformas como Facebook,
Twitter e Google, as empresas passam a ter o direito de tratar os dados
(respeitada a finalidade específica), desde que não violem a lei.
Contudo, a lei lista uma série de responsabilidades. Entre elas estão a
garantia da segurança dos dados e a elaboração de relatórios de impacto à
proteção de dados, se solicitados pela autoridade regulatória.
A norma permite a reutilização dos dados por empresas ou órgãos
públicos, em caso de "legítimo interesse” desses. Estabelece, no
entanto, que esse reúso só pode ocorrer em uma situação concreta, em
serviços que beneficiem o titular e com dados “estritamente
necessários”, respeitando os direitos dele.
“Não é possível prever todas as situações, especialmente quando se
trata de tecnologia. Por isso, é fundamental a previsão de uma norma
fluida como o legítimo interesse, capaz de se adaptar às evoluções
tecnológicas. Esse conceito indeterminado é justamente o que impedirá
que a lei se torne obsoleta diante do usos novos dos dados,
inimagináveis hoje”, observa Fabiano Barreto, especialista em política e
indústria da Confederação Nacional da Indústria (CNI).
Direitos
De outro lado, o titular ganhou uma série de direitos. Ele poderá,
por exemplo, solicitar os dados que a empresa tem sobre ele, a quem
foram repassados (em situações como a de reutilização por “legítimo
interesse”) e para qual finalidade. Caso os registros estejam
incorretos, poderá cobrar a correção. Em determinados casos, o titular
terá o direito de se opor a um tratamento.
O titular terá ainda direito à portabilidade de suas informações,
assim como ocorre com número de telefone. A autoridade regulatória, se
criada, deve definir no futuro como isso será feito. Mas a possibilidade
de levar os dados consigo é importante para que uma pessoa possa trocar
de aplicativo sem perder seus contatos, fotos ou publicações.
Outra garantia importante é a relativa à segurança das informações.
Os casos de vazamento têm se multiplicado pelo mundo, atingindo
inclusive grandes empresas, como a Uber. Além de assegurar a integridade
dos dados e sua proteção contra vazamentos e roubos, as empresas são
obrigadas a informar ao titular se houve um incidente de segurança. No
caso envolvendo o Facebook e a empresa Cambridge Analytica, por exemplo,
a empresa norte-americana teve conhecimento há anos do repasse maciço
de informações, mas foi comunicar aos afetados somente meses atrás.
A lei entra em uma seara importante, na decisão por processos
automatizados (como as notas de crédito). “Há também o direito à revisão
de decisões tomadas com base no tratamento automatizado de dados
pessoais que definam o perfil pessoal, de consumo ou de crédito. A
Autoridade Nacional de Proteção de Dados também terá o papel de realizar
auditorias para verificação de possíveis aspectos discriminatórios
nesse tipo de tratamento”, destaca Rafael Zanatta, do Instituto de
Defesa do Consumidor (Idec).
O texto listou garantias específicas para crianças e pessoas com
idade até 12 anos. A coleta fica sujeita a uma série de restrições, deve
ser informada de maneira acessível para esse público e fica
condicionada à autorização de pelo menos um dos pais. “Para as famílias,
isso significa ter, finalmente, uma forma de garantir que não estão
usando dados de seus filhos de forma não autorizada. Isso é fundamental.
Afinal, as crianças estão em um processo peculiar de desenvolvimento e,
por isso, são mais vulneráveis”, afirma Pedro Hartung, do Instituto
Alana, organização voltada à defesa dos direitos de crianças e
adolescentes.
Negócios
Ao estabelecer garantias e responsabilidades às empresas, a lei vai
ter impacto importante nos negócios realizados no Brasil e com parceiras
estrangeiras. A primeira mudança é que, com sua aprovação, o país passa
a atender a exigências de outros países e regiões, como a União
Europeia. Sem isso, as empresas nativas poderiam ter dificuldades para
fechar negócios.
Na avaliação do coordenador da área de direito digital da firma
Kasznar Leonardos Advogados, Pedro Vilhena, as empresas deverão passar
por um processo de adaptação. Elas tendem a racionalizar a coleta, uma
vez que passarão a estar suscetíveis a sanções por parte da autoridade
regulatória. De acordo com o texto, as penalidades poderão chegar a R$
50 milhões.
“O valor de R$ 50 milhões é considerável para algumas, mas, para
outras, é irrisório. A principal sanção é a proibição de tratamento de
dados. Algumas empresas podem ter que deixar de operar porque não
cumpriram obrigações da lei”, destaca Vilhena.
Autoridade regulatória
O detalhamento de boa parte dessas regras, direitos e
responsabilidades depende da autoridade regulatória prevista no texto.
Ela poderá definir parâmetros (como as exigências mínimas de segurança),
realizar auditorias, solicitar relatórios de impacto à proteção de
dados e será a responsável por fiscalizar e definir possíveis punições.
Contudo, sua criação vem sendo alvo de polêmica. Segundo o professor
de direito da Universidade Mackenzie e fundador da organizaçao Data
Privacy Brasil Renato Leite, há questionamentos no Executivo tanto de
caráter jurídico quanto político e orçamentário. Mas a não criação da
autoridade, alerta o especialista, pode afetar duramente a efetividade
da lei. “Termos a regra sem uma autoridade que faça a sua aplicação é
abrir espaço para uma grande chance de insucesso. É o risco de ser uma
lei que na prática ´não pegue´”.
Edição: Graça Adjuto
Por Jonas Valente - Repórter da Agência Brasil