Fim de sanções de Trump e OEA enterram plano bolsonarista de classificar Brasil como ‘ditadura’

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Fim de sanções de Trump e OEA enterram plano bolsonarista de classificar Brasil como ‘ditadura’

ICL Notícias conta bastidores sobre como naufragou operação de Eduardo Bolsonaro para tentar criar tese de que o país estaria vivendo regime autoritário
28/12/2025 | 05h30 


O plano era ambicioso:
forçar a viagem de uma relator da Comissão Interamericana de Direitos Humanos ao Brasil para comprovar que existia uma suposta ditadura no país. Com esse informe, portanto, a ala mais radical do bolsonarismo percorreria o mundo alertando sobre o fato de que estavam sendo perseguidos, que o Brasil estava se transformando numa “nova Venezuela” e que sanções deveriam ser adotadas.

Justificariam que nunca existiu um golpe e que as prisões de seus líderes são arbitrárias.

Mas nada disso funcionou. No último dia 26, sem alarde, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos publicou seu informe sobre a liberdade de expressão no Brasil e concluiu – sem surpresas – que não há uma ditadura no país e nem a censura generalizada contra movimentos políticos.

Semanas antes, a tese promovida por Eduardo Bolsonaro pelo mundo sobre o suposto “regime de exceção” no Brasil já havia sido duramente abalado com a decisão de Donald Trump de retirar sanções contra Alexandre de Moraes.

Agora, com exclusividade ao ICL Notícias, autoridades brasileiras e estrangeiras contam como o sonho bolsonarista se transformou em um pesadelo para os golpistas, com um informe que, ao ser publicado, constatou que a democracia está vigente no Brasil.

A origem

Tudo começaria ainda em 2024, com articulações de grupos bolsonaristas e alianças com entidades de extrema direita nos EUA, como a ADF – classificada nos EUA como organização disseminadora de ódio. Aos poucos, foi construída a estratégia de vender ao mundo a ideia de que o Brasil estaria vivendo um “regime autoritário”, que a eleição de Lula teria sido duvidosa, que a censura estaria em vigor e que haveria uma perseguição política.

Se parte da ofensiva ocorria nos bastidores do poder em Washington, a estratégia montada previa a criação e a manipulação de um informe internacional que, ao criticar o Brasil, serviria de cartão de visita e chancela aos bolsonaristas para percorrer as capitais do Ocidente em busca de simpatia, apoio, refúgio e dinheiro.

O caminho escolhido foi a Comissão Interamericana, entidade que depende fortemente de recursos americanos.

E, dentro do órgão regional, a opção foi a de focar as energias sobre o relator de Liberdade de Expressão, Pedro Vaca.

Inicialmente, ele havia causado espanto no governo brasileiro ao aceitar realizar uma audiência em Washington onde reuniria tanto jornalistas profissionais alvo de violência no Brasil como as demandas da extrema direita de que estaria sendo alvo de censura.

O seu projeto conseguiu ser evitado. Mas, em troca, foi costurada uma visita de Vaca ao Brasil. O temor do governo era de que o relator assumisse uma tese “absolutista” da liberdade de expressão, desconhecendo as manobras da extrema direita nacional.

Uma missão repleta de tensão

A tensão marcaria a missão do relator desde seu desembarque no país, há quase um ano.

Enquanto ele se reunia com diversas autoridades, Eduardo Bolsonaro percorria gabinetes de congressistas da base de Trump em Washington para pedir apoio. Na preparação para a viagem, esses congressistas escreveram uma carta para a Comissão Interamericana colocando pressão. Segundo eles, se a relatoria de Vaca não lidasse com a censura contra os bolsonaristas, eles exigiriam que Trump encerrasse os repasses para o órgão. Sem esse dinheiro, a OEA estaria paralisada.

Fontes da sociedade civil, governo e STF consultadas pelo ICL admitiram que a viagem tinha o potencial de ser “um desastre” se fosse sequestrada pelo bolsonarismo.

Até então, o governo brasileiro mantinha apenas uma relação protocolar com a relatoria da Comissão Interamericana. Foi um trabalho nos bastidores por parte da sociedade civil que permitiu a aproximação. A percepção de ativistas era de que apenas um comportamento mais aberto por parte do governo Lula permitiria que a relatoria se sentisse confortável para indagar e, eventual, avaliar de forma equilibrada o país.

E o trabalho surtiu efeito. Mauro Vieira, o chanceler, se reuniu com Vaca e reafirmou o compromisso do Brasil com a liberdade de expressão e o combate à desinformação.

No STF, uma reunião com os ministros Luis Roberto Barroso e Alexandre de Moraes também receberam o relator, algo raro em visitas de missões internacionais. A ideia era de que Vaca se sentisse respeitado, diante da atitude do Supremo de prestar contas.

Uma das atividades das autoridades brasileiras foi a de desmascarar quem eram os bolsonaristas. O relator recebeu, por intermédio do Ministério de Relações Exteriores, um dossiê onde estavam recortes e prints de publicações de extrema direita atacando Vaca.

O recado a ele foi claro: o que está sendo feito contra você é o mesmo que o bolsonarismo promove contra juízes e autoridades que se recusam a ceder.

A viagem também foi marcada por tentativas de manipulação. Na reunião que manteve com parlamentares bolsonaristas, a delegação da Comissão Interamericana foi surpreendida com a acusação dos deputados de que o órgão estava atuando para censurá-los. O incidente ocorreu quando as equipes de deputados e senadores bolsonaristas pressionaram a OEA a suspender seu protocolo usado há anos em toda a América Latina e permitir que a reunião fosse filmada.

Com as imagens, esses deputados transformaram suas participações em verdadeiros shows nas redes sociais. Para muitos, Vaca sentiu na pele a agressividade dos bolsonaristas.

Outro fato que marcou a visita foi a transformação de uma de suas declarações à imprensa como instrumento para a extrema direita. Na saída de uma das reuniões, Vaca declarou a um jornalista que estava “impressionado” com os informes. A notícia replicada pela extrema direita era de que ele teria ficado impressionado com os informes da suposta censura que eles tinham apresentado para Vaca.

Horas depois, Vaca desmentiu a versão bolsonarista e afirmou que uma ditadura não recebe um relator. Ele sequer havia dado a declaração na saída de uma reunião com a extrema direita. Assustada, a equipe do relator entendeu que havia ocorrido uma tentativa deliberada de manipulação.

A constatação é de que ele experimentou em primeira mão a confusão deliberada que é promovida pela extrema direita entre informação e desinformação.

Outra estratégia da sociedade civil foi a de garantir que a agenda de Vaca não se limitasse ao debate promovido pelos bolsonaristas. Para isso, os encontros dele com ativistas, organizações e especialistas apontaram como aqueles que se dizem vítimas da censura são, de fato, agentes de censura.

A Abraji, por exemplo, fez levantamento de ataques contra jornalista pela extrema direita e entregou o documento para Vaca.

Um dos encontros ainda considerados como fundamentais foi com os parlamentares que fizeram parte da Comissão de Inquérito do 8 de Janeiro. Na reunião, Vaca recebeu relatos de como existe uma indústria da desinformação que funciona não apenas no caso da democracia, mas também relação às vacinas e tantos outros temas.

Pressão de Marco Rubio

A pressão, porém, não terminou com o fim da viagem. O escritório de Vaca passou a ser alvo de pressões, tanto por parte da extrema direita brasileira como americana. Em meados de 2025, quando o governo de Donald Trump começava a desenhar a aplicação de sanções contra o ministro Alexandre de Moraes – hoje retiradas – a Comissão Interamericana foi consultada pela diplomacia americana sobre os prazos para a publicação do informe sobre o Brasil.

Washington queria saber, no fundo, se poderia usar uma eventual conclusão negativa do informe como base para justificar a imposição da Lei Magnitsky contra autoridades brasileiras.

O governo brasileiro também mandou seus recados, alertando à Comissão que sucumbir à pressão americana revelaria o fim da independência do órgão que já teve um papel histórico na defesa dos direitos humanos no Hemisfério.

Governo e sociedade civil comemoraram informe

Vaca optou por esperar. A “química” entre os presidentes Lula e Trump também abriu caminho para que seu informe não fosse alvo de uma disputa maior ou que se mandato fosse atacado por Marco Rubio.

Ainda que estivesse pronto há semanas, a escolha da publicação em meio às festas do final de ano também serviu para tentar não causar ainda mais polêmica. Ainda assim, Flávio Bolsonaro, Paulo Figueiredo e aliados do bolsonarismos tentaram, sem êxito, apresentar o informe como uma suposta vitória de seu campo. Mas não conseguiram evitar que vozes dentro da própria extrema direita tenham admitido a derrota.

Um ano depois da visita, o sentimento entre membros da sociedade civil e governo brasileiro é de alívio. Para diversas pessoas que participaram dos encontros com Vaca e que acompanharam o processo, o resultado foi melhor do que se esperava.

A Comissão Interamericana confirmou que o Brasil é uma democracia plena, ainda que com melhorias que podem ser implementadas. O documento, somado à retirada da sanções previstas pela Lei Magnitsky contra Moraes ainda enterrou o projeto da extrema direita de usar a falácia da suposta existência de uma ditadura como arma para se defender pelo mundo.

Para o acadêmico Fábio de Sá e Silva, professor da Universidade de Oklahoma, o relatório tem a virtude de situar o debate sobre liberdade de expressão no contexto histórico do Brasil, especialmente considerando as eleições de 2022. “Fala explicitamente que houve uma tentativa de golpe, que se baseou em desinformação sobre urnas. Argumenta, corretamente, que à luz da convenção americana de direitos humanos não existe liberdade absoluta de expressão — há discursos protegidos (políticos) e outros (ex., de ódio) não protegidos”, diz.

“Chama o legislativo brasileiro a regular melhor plataformas e recomenda balizas à atuação do judiciário, mas jamais sugere que as ações passadas foram ilegítimas. Por fim, duas notas importantes: diz que é preciso julgar e condenar quem orquestrou a tentativa de golpe, mostrando que anistia não se coaduna com os estândares Interamericanos de direitos humanos; e ainda denuncia o uso instrumental da liberdade de expressão por parte de quem reclama de censura, mas apoiou ditaduras e violações de direitos humanos”, completou o acadêmico.

O projeto de Eduardo Bolsonaro, assim, estava enterrado. Pelo menos por enquanto.

PSOL Eduardo Bolsonaro

Mas o caso deixou um aviso: movimentos ultraconservadores vão usar as estruturas internacionais para justificar suas narrativas. Para isso, tentarão sequestrar a Comissão Interamericana e outros órgãos para que sirvam ao arsenal para a implementação de uma agenda reacionária e autoritária. 

Jamil Chade
Jamil Chade

Cruzando fronteiras com refugiados, testemunhando crimes contra a humanidade, viajando com papas ou cobrindo cúpulas diplomáticas, Jamil Chade percorreu mais de 70 países. Com seu escritório na sede da ONU em Genebra, ele foi eleito o segundo jornalista mais admirado do Brasil em 2025. Chade foi indicado 4 vezes como finalista do prêmio Jabuti. Ele é embaixador do Instituto Adus, membro do conselho do Instituto Vladimir Herzog e foi um dos pesquisadores da Comissão Nacional da Verdade.

https://iclnoticias.com.br/trump-e-oea-enterram-plano-bolsonarista-de-classificar-brasil-como-ditadura/

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