'Não são gestos inflamados, são de mobilização', diz pesquisador sobre Musk e Bannon
'Não são gestos inflamados, são de mobilização', diz pesquisador sobre Musk e Bannon - ICL Notícias
Durante as celebrações de posse de Donald Trump em Washington, seu ex-assessor e figura chave da extrema direita mundial Steve Bannon ergue o braço direito ao saudar a delegação do partido de extrema direita com conexões neonazistas alemão Alternative für Deutschland (AfD).
Um dia depois, no Capital One Arena, em Washington D.C., é a vez do bilionário dono do X, da Tesla e chefe do Departamento de Eficiência Governamental de Trump fazer o mesmo gesto não uma, mas duas vezes em direção ao público presente.
A psicanálise nos ensina que dar nome às coisas é assumir sua existência, trazer à tona sua carga de afetos e história e um importante passo na elaboração de processos.
O que os dois aliados de Trump fizeram não foi um “gesto polêmico” como tem sido reproduzido por parte tendenciosamente cautelosa da imprensa. Foi uma saudação nazista.
Sem margem para interpretação, sem sutilezas. É o que é. Não tenhamos medo de chamar as coisas por seus nomes.
Se o tivessem feito na Alemanha, onde a apologia ao nazismo é crime, Bannon e Musk poderiam enfrentar 3 anos de prisão.
Mas para além do choque, é importante entender que intenções se encontram nesses gestos, feitos por essas pessoas, nesse exato momento da história.
Para aprofundar essas ideias, a coluna conversou com o Professor de História Contemporânea da Universidade Federal de Juiz de Fora e coordenador do Observatório da Extrema Direita Odilon Caldeira Neto.
Para ele, a utilização da simbologia está dentro da retomada de uma questão cara para a história da extrema direita nos Estados Unidos, que envolve o supremacismo branco e a própria história do neonazismo nos Estados Unidos. “O neonazismo tem, nos Estados Unidos, um dos seus campos principais para formulação de propostas, de ideias e de estratégias”.
A gente sabe que um gesto nunca é só um gesto. Como você avalia a saudação nazista feita por Elon Musk e por Steve Bannon?
A espetacularização da política é um dos traços constituintes do aparato ideológico e simbólico da extrema direita, principalmente se a gente toma como referência as experiências da era dos fascismos, particularmente o nacional socialismo. Então, o gesto definitivamente carrega consigo uma série de significantes.
É muito importante considerar que não se trata de uma condição mais restritiva voltada a nichos ou subculturas digitais da extrema direita. Nesse caso, seja por Musk, seja por Bannon, é a utilização daquele que é o símbolo, o gestual mais clássico do nacional socialismo.
É um ponto de ruptura em alguma medida, onde perdem-se as vergonhas, se é que algum dia elas existiram, da utilização das exterioridades mais explícitas do universo simbólico e ideológico do nacional socialismo.
Então, essa saudação está inscrita, primeiro, nessa dinâmica de massificação do próprio gesto. Além disso, eu considero importante situar que ele não vem apenas no sentido de retomada da simbologia clássica do nacional socialismo.
A utilização da simbologia está dentro da retomada de uma questão que é muito cara para a história da extrema direita nos Estados Unidos, que é a da identidade branca, do supremacismo branco e da própria história do neonazismo nos Estados Unidos. O neonazismo tem, nos Estados Unidos, um dos seus campos principais para formulação de propostas, de ideias, de estratégias.
Eu vejo que esse símbolo é uma forma de provocação, de resgate, mas também de mobilização, de uma espécie de associativismo político bastante sedimentado no extremismo de direita nos Estados Unidos.
E aí temos as conexões com a AfD. Musk está apoiando o partido extremista alemão para as próximas eleições e Bannon fez o gesto justamente quando chamava a delegação da AfD que estava no evento com ele. Como você está vendo essa aproximação da extrema direita norte-americana com a alemã?
O aceno feito em termos estratégicos por Elon Musk e em termos da ritualística, da simbologia, do gestual, no caso de Steve Bannon, para a AfD não é despropositado. Dias atrás, inclusive, o Elon Musk, ao se encontrar com uma liderança da AfD, fez mais uma investida no negacionismo sobre o nazismo, no sentido da busca pela delimitação de Hitler como marxista, coisas que, enfim, não se sustentam do ponto de vista histórico e menos ainda historiográfico.
O interesse com a AfD me parece que entra um pouco no sentido de uma certa sublimação do problema histórico do nazismo. O caso alemão é muito paradigmático porque em grande medida, de 1945 em diante, os traumas coletivos associados ao nazismo foram grandes impeditivos ou no mínimo uma barreira de controle aos processos mais nítidos do extremismo de direita global.
Ou seja, os agentes políticos se afastavam dessa credencial e ao se afastar dessa credencial em grande medida aceitavam algumas condicionantes do jogo democrático, ou mesmo suavizavam o discurso.
Não é despropositado que num cenário de ascensão da AfD e da utilização da simbologia e do gestual nazista pelas lideranças ou pelos agitadores do trumpismo, que haja também um esforço no sentido de esvaziamento da memória problemática do nacional socialismo, do holocausto e assim por diante. Porque em se esvaziando essa condição, é possível falar abertamente sobre aquilo que estabelece como uma vinculação entre esses atores, que estão em diferentes espaços nacionais, mas articulados em torno de demandas, que são o elogio de uma ideia de supremacismo racial, o elogio à diferença de culturas eurocêntricas.
Embora muitos deles não falem abertamente sobre essa questão, a utilização dessas linguagens ou dessas estratégias supostamente cifradas — ou não tão cifradas — são formas de alargamento da memória e de pauperização da dimensão problemática dessa memória.
Por um lado, ganham no cenário norte-americano, estadunidense, que possam falar abertamente em torno das teses de supremacismo branco, que são tão caras — e a gente pode lembrar aqui o aspecto tardio em torno das disputas dos direitos civis dos negros e das negras — enquanto resolvem um problema que é muito caro para o contexto da extrema direita alemã e da extrema direita europeia.
A AfD também tem crescido nos votos populares entre jovens. Inclusive entre adolescentes em escolas alemãs em votações simbólicas. Na Alemanha, crianças e adolescentes também têm se aproximado do neonazismo e alguns pesquisadores têm dito que isso vem de um lugar de “rebeldia”, de desafio, uma tentativa de chocar. Você concorda? No Brasil também tivemos episódios de ataques a escolas em que meninos se diziam neonazistas. Por que a juventude está se aproximando do fascismo e do neonazismo?
O sentido de rebeldia tem sido comumente evocado por tendências das direitas radicais, do extremismo de direita e assim por diante. Eu vejo que tem uma dupla dimensão aqui. De um lado, do ponto de vista eleitoral, o sentido de rebeldia tem por objetivo dar um sentido de organicidade ao voto contra o chamado “politicamente correto”, por exemplo a contrariedade à ampliação das políticas em defesa dos direitos humanos, um voto contrário às minorias, sejam elas minorias em perspectiva sexual, étnica, de gênero, imigrantes e assim por diante.
Esse sentido de rebeldia descreve uma perspectiva falsamente disruptiva que pode ser enquadrada em um voto que se vende na arena política como um voto antissistema.
Agora, um outro sentido de rebeldia é essa de uma juventude que se radicaliza em torno das ideologias políticas fascistas do século 20. Esse é um tipo de rebeldia que vai mais a fundo, que busca justamente, no elogio dessas ideologias políticas, fazer uma forma de crítica às sociedades contemporâneas e aos seus mecanismos institucionais.
Então, ela vai além da questão restrita a um cálculo político-eleitoral. Ela efetivamente busca destruir as instituições democráticas, fazer ataque às organizações supranacionais ou multilaterais e promulga o ataque às minorias, às mulheres e assim por diante.
Esse tipo de rebeldia advoga mais abertamente no sentido de genocídio, nos sentidos múltiplos do genocídio, que é o assassinato, a proibição de casamentos entre etnias distintas, o ataque sistemático a essas minorias em ambientes religiosos, em ambientes escolares.
Outra coisa que a gente ouve bastante é que esses gestos e discursos são apenas inflamados, que não tem implicações práticas. Como você vê isso?
Afirmar que os gestos são apenas inflamados é ignorar que eles têm capacidade de mobilização de bases radicais — auxiliam na radicalização ainda maior das bases já radicais, e inclusive legitimam atitudes mais radicais.
O Trumpismo, o Bolsonarismo são fenômenos políticos não tradicionais da política da democracia liberal representativa. Por mais que eventualmente utilizem partidos políticos menos ou mais consolidados — menos consolidados como no caso de Bolsonaro no brasil e mais consolidados no caso do partido Republicano nos Estados Unidos — esses fenômenos têm uma necessidade constante de mobilização das suas bases.
Porque são essas bases que, inclusive na era da plataformização da política, vão mostrar engajamento nas ações mais radicais, vão incorporar as dinâmicas antidemocráticas e vão eventualmente estabelecer uma massa afeita às possibilidade de rupturas institucionais.
Os eventos do ataque ao Capitólio nos Estados Unidos e a tentativa de golpe no Brasil são bastante significativos. E essas bases são formadas por meio de grupos, sociabilidade que muitas vezes opera por fora do panorama da política formal e precisa ser tomada como uma parte legítima ou constituinte de um todo muito mais plural.
Por que isso é importante? Porque a medida que determinados símbolos são evocados, sejam eles apitos de cachorros ou gestuais mais explícitos, isso faz com que essa base permaneça fiel a esses grupos mais amplos.
O Trumpismo não é apenas o núcleo duro do governo Trump, é também dos seus ideólogos. Um fenômeno que pode ser um guarda-chuva do universo do extremismo de direita dos estados unidos e do extremismo de direita global.
Esses grupos têm demandas particulares e bandeiras que podem não ser absolutamente incorporadas no universo do Trumpismo mas precisam ser reconhecidas para que esses grupos se sintam representados nesses projetos políticos mais amplos.
Então esses não são gestos apenas inflamatórios, são de mobilização. E sendo fenômenos de mobilização eles estabelecem uma legitimidade que não é concedida do ponto de vista do aparelho institucional, por meio do sistema político formal. Ela é concedida justamente por meio do campo de ideias.
É um aviso: “você é meu irmão, você faz parte, estou atento às suas demandas, necessito que você permaneça atento e fiel a minha liderança”.
Basta olhar para como o Trump mencionou os Proud Boys [organização militante neofascista de extrema
direita exclusivamente masculina norte-americana] em alguns momentos de crise política no seu primeiro governo. Ele quer dizer “fiquem alertas e fiéis que suas demandas serão atendidas por mim”.
https://iclnoticias.com.br/nao-gestos-inflamados-mobilizacao-pesquisador/