Cid tem de revelar, não de esconder. Ei, Mito: tique-taque, tique-taque...


Reinaldo Azevedo
Colunista do UOL
Jair Bolsonaro entre Mauro Cid (à esq.) e Walter Delgatti. As suas escolhas batem à porta, e o ex-presidente vai ter de responder por seus crimes
Jair Bolsonaro entre Mauro Cid (à esq.) e Walter Delgatti. As suas escolhas batem à porta, e o ex-presidente vai ter de responder por seus crimes Imagem: Lula Marques/Agência Brasil; Tânia Rêgo/Agência Brasil; Reprodução

O tenente-coronel Mauro Cid decidiu confessar. Operou o esquema da venda de joias, sabia que praticava ilegalidades e o fez a mando de Jair Bolsonaro. Continuou envolvido com o que parece ser uma "organização criminosa" — porque "estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem mediante a prática de infrações penais" — mesmo quando o chefe da turma já não era presidente da República, e ele, Cid, não era mais seu subordinado. A confissão pode render alguma benevolência ao militar na hora da dosimetria da pena. Mas não há como sustentar a tese de que apenas obedecia a ordens, inconsciente de que eram manifestamente ilegais. Mais: não se pode correr o risco de permitir que uma confissão esconda crimes. Vou explicar.

Bolsonaro se lascou um pouco mais. Depois que vieram a público as afirmações do criminalista Cezar Bitencourt, novo advogado de Cid, o ministro Alexandre de Moraes autorizou, a pedido da PF, a quebra dos respectivos sigilos bancário e fiscal de Bolsonaro e de sua mulher, Michelle. E isso significa que os dois são agora investigados. Moraes também concordou com a solicitação de cooperação a autoridades dos Estados Unidos para acesso a contas dos investigados naquele país.

Que dia esta quinta, não é mesmo, Bolsonaro? Até agora, é o pior de sua existência política. Quando estiver sendo recolhido a um presídio, certamente há de doer um pouco mais. E, se não sabe, a esta altura, que esse encontro é inevitável, então não está associando os fatos à sua extrema gravidade.

1 - Cid vai contar que participou da venda das joias e que repassou dinheiro em espécie a Bolsonaro para não deixar rastros; a PF já sabia;

2 - vai dizer que o fez, obviamente, seguindo determinação do ex-presidente; a PF também já sabia.

À revista "Veja", o advogado observa:
"A relação de subordinação na iniciativa privada é uma coisa. O funcionário pode cumprir ou não. No funcionalismo público, é público, é diferente. Em se tratando de um militar, essa subordinação é muito maior".

Vamos ver. Define, como já lembrei aqui, o Artigo 38 do Código Penal Militar:
"Art. 38. Não é culpado quem comete o crime:
Coação irresistível
a) sob coação irresistível ou que lhe suprima a faculdade de agir segundo a própria vontade;
Obediência hierárquica
b) em estrita obediência a ordem direta de superior hierárquico, em matéria de serviços.
1° Responde pelo crime o autor da coação ou da ordem.
2° Se a ordem do superior tem por objeto a prática de ato manifestamente criminoso, ou há excesso nos atos ou na forma da execução, é punível também o inferior."

Ocorre que Cid não será julgado pela Justiça Militar.

O Código Penal dos não militares tem a mesma disposição. Lê-se no Artigo 22:
"Art. 22 - Se o fato é cometido sob coação irresistível ou em estrita obediência a ordem, não manifestamente ilegal, de superior hierárquico, só é punível o autor da coação ou da ordem."


O tenente-coronel certamente não foi submetido a coação irresistível, não é mesmo? E, como já observei aqui ontem, tem formação intelectual e experiência para saber que fazia, sim, algo manifestamente ilegal. Logo, não há hipótese da exclusão de ilicitude. Mas sempre pode apostar que a confissão vai amolecer a coração dos juízes.

QUANTOS ARCANOS? E A DELAÇÃO
Uma questão: quantos arcanos, quantos segredos, guarda Mauro Cid? Todos, a esta altura, têm uma curiosidade: por que escolheu a confissão, por ora ao menos, e não a delação premiada? Ocorre a qualquer um com um mínimo de intimidade com a lógica que a confissão tem de servir para revelar a teia de alguns atos criminosos, mas não pode se prestar a esconder outros tantos. Explico.

O ato de confessar é apreciado pelos juízes quando, sem ele, as autoridades de investigação talvez não chegassem à autoria de um crime. Cumpre indagar: é o caso? Até aqui, a Polícia se antecipou a Cid, certo? Havia, afinal, um excesso de provas. Da mesma sorte, a investigação já tinha explicitado que ele agia sob o controle de Bolsonaro. Vale dizer: segundo o que se noticiou até agora, o militar não vai contar nada que a PF já não soubesse. Mas é claro que se avança um pouco: afinal, Bolsonaro e Michelle passam agora à condição de investigados.

O estatuto da delação premiada está lá, na Lei 12.850, justamente a das "organizações criminosas". Cid nada tem a dizer que a Polícia ainda não saiba, hipótese em que pode realmente negociar um alívio da pena, por intermédio da delação? Uma espécie de roteiro de um golpe, por exemplo, encontrado em seu celular, tem que origem? Como era seu contato com, deixe-me ver como dizer, "células" que veiculavam desinformação nas redes sociais — algumas se fingindo, inclusive, de jornalismo? O tenente-coronel não era só um carregador de malas e um vendedor de joias. Era também um ideólogo.

DELGATTI
As afirmações feitas por Walter Delgatti Neto em depoimento à CPMI dos atos golpistas são tão espetaculares que a primeira tentação é achar que vive no reino da fantasia. Mas, em seguida, a gente se lembra de que, com efeito, o então presidente da República se encontrou com ele para, sejamos benevolentes, "discutir" a segurança das urnas eletrônicas. Não só: pediu que fosse encaminhado ao Ministério da Defesa.

A pasta é aquela que, sob o comando do general Paulo Sérgio Nogueira, passou a fazer um verdadeiro "bullying" com o TSE. O tal "relatório minucioso" sobre a segurança das urnas, diz Delgatti, foi inteiramente orientado por ele. Nogueira assegura que nunca esteve com ele. Não? Quem esteve e quem deu a ordem? Mais um constrangimento às Forças Armadas e mais um alerta: sempre que farda e política se misturam, perdem as duas.


Nesta sexta, o "hacker" presta novo depoimento à Polícia Federal. São tais e tantas as barbaridades que disse à Comissão que, por óbvio, se faz necessário verificar se existem fios que possam ser puxados para levar adiante a investigação. Há, por exemplo, a questão do suposto grampeamento de Moraes, que já teria sido feito. Bolsonaro teria convidado o interlocutor a assumir a autoria, prometendo-lhe um indulto posterior. Também tria havido o convite para criar um código-fonte "fake" para simular a vulnerabilidade da urna eletrônica...

"Pô, Reinaldo, isso não tem cheiro de mistificação?" Tem. Seria um troço tão aloprado que a primeira reação é opor resistência intelectual à lambança. E um presidente receber um "hacker", conduzido por uma extremista, e encaminhá-lo ao Ministério da Defesa? Não parece além da imaginação? E aconteceu.

Voltem lá ao começo, ao caso das joias. Depois tragam à memória as jornadas contra o distanciamento social e a vacina e em favor da cloroquina. Lembrem-se das falas indignas sobre os mortos. Coloquem na conta os sucessivos decretos sobre armas, bem como os quatro anos de permanente pregação golpista. Não havia coisa ruim ou absurda que não fosse possível. Quando se trata de Bolsonaro, a dúvida quase sempre perde para os fatos. Mas o cara começou a se encontrar com o seu destino, que nasceu das suas escolhas. Pode demorar um pouco ainda, mas chega. Tique-taque, tique-taque, tique-taque...

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.


OLHAR APURADO

Uma curadoria diária com as opiniões dos colunistas do UOL sobre os principais assuntos do noticiário.

https://noticias.uol.com.br/colunas/reinaldo-azevedo/2023/08/18/cid-tem-de-revelar-nao-de-esconder-ei-mito-tique-taque-tique-taque.htm

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