Documentos revelam que bomba que matou brasileiro mudou história da ONU


Jamil Chade
Colunista do UOL
Sérgio Vieira de Mello com o Secretário Geral da ONU Kofi Annan em foto de 2002
Sérgio Vieira de Mello com o Secretário Geral da ONU Kofi Annan em foto de 2002 Imagem: Matt Campbell/AFP Photo

A ONU marca neste sábado o 20° aniversário do ataque terrorista que matou 22 de seus funcionários no Iraque, entre eles o brasileiro Sérgio Vieira de Mello, o chefe da missão das Nações Unidas em Bagdá. A explosão, porém, não apenas colou um fim à carreira brilhante de um brasileiro que caminhava, segundo muitos, para ser o secretário-geral da ONU. Mas explodiu uma era inteira nas Nações Unidas, expôs sua manipulação pelas grandes potências e abriu feridas internas que, 20 anos depois, continuam sem estar cicatrizadas.

Documentos obtidos pelo UOL revelam que o atentado acabou se transformando em um divisor de águas na história da entidade. A crise que começaria naquele 19 de agosto de 2003 jogaria toda a ONU em um de seus momentos mais complicado da história, ao ponto de levar o então secretário-geral, Kofi Annan, a literalmente perder sua voz por meses e ter de ser consultados por psicólogos.

Ele não seria o único. A bomba que matou Vieira de Mello revelou o risco de a ONU se associar a potências que ocupam países, calou a entidade no Iraque e em outras crises pelo mundo por anos e deu um ponto final ao que muitos dentro da entidade chamaram de "Era da Inocência" dentro da organização.

Annan reagiria um ano depois, chamando a guerra de "ilegal". Como retaliação, viu o governo americano em peso revelando a corrupção dentro da ONU, ameaçando o destituir e, na prática, marginalizando as Nações Unidas das grandes decisões mundiais por anos.

O drama começaria em março de 2003. Vieira de Mello acabava de assumir o cargo de Alto Comissário da ONU para Direitos Humanos em Genebra. Mas foi chamado para uma rara reunião com o presidente dos EUA, George W. Bush, na Casa Branca. Semanas depois, seria anunciado que o brasileiro assumiria o cargo de representante da ONU no Iraque.

Sua nomeação foi permeada por polêmicas e ele sabia. Recusou a oferta por duas vezes. Na terceira, foi obrigado a atender a seu chefe, Annan.

A guerra havia ocorrido sem a autorização da ONU e, para os mais críticos, Bush queria naquele momento que Annan o ajudasse a legitimar a ocupação e solicitou que ele cedera o brasileiro para ocupar o novo cargo. Vieira de Mello lideraria uma missão sem mandato.

O próprio Luiz Inácio Lula da Silva, presidente que iniciava seu primeiro mandato naquele momento, chegou a tentar impedir sua nomeação, já que não queria um brasileiro liderando uma missão justamente no Iraque. O Brasil havia sido contra a guerra. "Eu sou apenas um soldado", confessou Vieira de Mello a pessoas próximas a ele quando o questionaram por que aceitou o cargo.

A ONU não tinha mandato, as reuniões que ele pedia não eram atendidas ou eram canceladas de última hora.


No dia 20 de junho de 2003, Vieira de Mello aproveitaria uma passagem por Amã na Jordânia para conversar com o então chanceler Celso Amorim. No encontro, deixou claro que estava preocupado.

O pedido ao chanceler Amorim era para que o Brasil ajudasse a dar uma resposta multilateral à missão da ONU no Iraque. Só assim, segundo ele, o papel da ONU e a própria entidade poderiam ser salvas de uma marginalização. Seu pedido não teria tempo para ser atendido.

No dia 19 de agosto, um caminhão estacionado no muro da janela do escritório de Vieira de Mello faria uma parte inteira do Hotel Canal, sede da ONU, vir abaixo. Sem equipamentos de resgate, sem treinamento e sem a ajuda dos americanos, apenas dois soldados tentaram de forma desesperada retirar o brasileiro dos escombros. Não conseguiram.

Um inquérito foi aberto e se descobriram falhas profundas no sistema de segurança da entidade. Mas foi outra constatação que abalaria a entidade: a de a ONU havia se aproximado de forma exagerada à potência ocupante e passou a ser vista como um braço dos americanos. Um segundo atentado contra a ONU meses depois faria com que a entidade abortasse sua missão e retirasse todos os seus 600 funcionários do Iraque. Levaria quase um ano para que a pessoa que substituiria Vieira Mello desembarcasse em Bagdá.

Abu Musab Zarqawi, líder da Al Qaeda, assumiria anos depois o atentado e confirmaria o que os serviços de inteligência já suspeitavam: a ONU havia se transformado em um alvo de terroristas diante da percepção de que estava chancelando as ações de Bush.

Silenciada

Nos anos seguintes à sua morte, telegramas, informes e documentos revelam uma ONU amedrontada, sem rumo e paralisada. Em reuniões no dia 22 de agosto de 2006, o diplomata que substituiria o brasileiro, Ashraf Qazi admitia que a ONU "continuava a enfrentar ameaças significativas" e que, dias antes, seu número 2 se salvou por pouco da morte.


Em um telegrama enviado em 2007 pela embaixada americana no Kuwait à secretaria de Estado, o relato é do encontro com primeiro-ministro do país, Shayk Sabah, com autoridades americanas. Desesperado diante da incapacidade da ONU, Sabah tentava convencer os americanos a trabalhar para mudar a opinião de Annan sobre o Iraque e retomar uma presença maior da entidade no país. "Vieira de Mello fez um grande trabalho, mas sua morte fez com que Annan tivesse reservas sobre o envolvimento no Iraque", disse.

Em maio daquele mesmo ano, um informe da diplomacia americana admitia que "as atividades da Missão da ONU no Iraque estavam estagnadas nos últimos dois anos e o entusiasmo se evaporou". "Os esforços humanitários, treinamento e reconstrução da sociedade civil desapareceram", reconhecia.

Esse comportamento contaminaria a ONU em vários outros setores e crises pelo mundo, diante de uma organização que havia sido exposta em sua relação com interesses de um grupo de países. "Dentro da organização, a bomba parecia ter de alguma forma minado de forma séria o multilateralismo", admitiu uma ex-funcionária, que pediu para não ser identificado. "As pessoas chegavam a se perguntar para que servia a ONU", disse.

A entidade teria de esperar a posse de Barack Obama para que, no campo, as ações voltassem a ser outras. Só seria em março de 2009 que a cúpula da ONU admitiria que havia chegado a hora de "superar 19 de agosto", em uma referência ao atentado. Numa reunião entre a então representante do Conselho de Segurança Nacional, Samantha Power, o diretor do Alto Comissariado da ONU para Refugiados para o Oriente Médio, Radhouane Nouicer, admitia que a entidade "havia se constituído no segundo inimigo" no Iraque e fala de "paranóia" em relação à segurança.

"A falta de capacidade de tomar decisões está impedindo a ONU de ser ativa no Iraque. Chegou o momento de superar 19 de agosto e começar a trabalhar de novo", disse, Nouicer.

Ainda assim, ex-funcionários e mesmo diplomatas que hoje ainda percorrem os corredores da entidade admitem que a bomba do dia 19 de agosto ainda ecoa pelos corredores, silenciando a capacidade de ação da ONU na Síria, Egito, Afeganistão e no próprio Iraque.

"Debaixo dos escombros, Sérgio (Vieira de Mello) pediu ajuda por horas antes de morrer", revelou um ex-agente de segurança. "O que talvez não tenhamos resgatado ainda é a própria ONU", completou.

Reportagem

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.


JAMIL CHADE

Todo sábado, Jamil escreve sobre temas sociais para uma personalidade com base em sua carreira de correspondente. 

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