Por quase 40 dias, até a noite de segunda-feira (8), uma intensa negociação ocupou os bastidores de Brasília, São Paulo, Buenos Aires e Lisboa. O deputado Paulinho da Força (SD-SP), conhecido nos meios sindicais como “Paulinho da Farsa”, esteve no centro dela. As conversas se deram pessoalmente, por celular, por meio de aplicativos como o Meets e também por intermédio de interpostas pessoas (terceiros autorizados a falar e a negociar em nome dos atores centrais).
O pano de fundo era a construção do texto final do Projeto de Lei (PL) “da Dosimetria” que terminou votado e aprovado na Câmara dos Deputados na madrugada da 4ª feira 10 de dezembro e permitirá a redução das penas aplicadas aos golpistas de 8 de janeiro de 2023. sobretudo, pode levar à diminuição do tempo em que o ex-presidente Jair Bolsonaro permanecerá em regime fechado por tentativa de golpe de Estado: de 6 anos e 4 meses estimados, para possíveis 3 anos e 1 mês. O cálculo final da pena será feito pelo juiz da sentença depois de recurso quando o projeto se transformar em lei e for sancionado pela presidente das República.
Michel Temer, advogado e professor de Direito que ocupou a presidência da depois da deposição de Dilma Rousseff no impeachment sem crime de responsabilidade, foi figura central na costura. Ao ser procurado por Paulinho da Força tão logo o deputado recebeu a incumbência de relatar o “Pl da Dosimetria”, Temer tratou de aplainar o espírito do amigo comum dele e do próprio parlamentar, Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal que relatou o julgamento de Bolsonaro e dos demais golpistas.
O ex-vice de Dilma sugeriu a Moraes que recebesse Paulinho para uma conversa – assim foi feito. Depois, abriram-se as portas do gabinete do ministro Gilmar Mendes, decano do STF, para que também escutasse os argumentos do deputado-relator do PL sem muitas reservas. Ampliando o círculo de diálogo franco com os ministros do Supremo, Paulinho da Força procurou, por fim, Dias Toffoli.
“Sem parecer anistia”, apelaram ministros
Aos três magistrados o parlamentar deixou claro que só um grande acordo que permitisse a redução das penas aplicadas a Bolsonaro e a possível liberdade aos “bagrinhos” condenados por terem integrado as hordas de golpistas que invadiram e vandalizaram as sedes dos três Poderes da República em 8 de janeiro de 2023 levaria “alguma paz” ao ambiente conflagrado entre o Congresso e a sociedade de comportamento que se construiu entre o Executivo (governo federal) e o Judiciário (STF). “Não pode ficar com cara de anistia. Não pode ter anistia a crimes. Não se pode falar em anistia”, exigiram todos os três ministros, à maneira de cada um deles, nas conversas pessoais mantidas com Paulinho da Força. O deputado nunca estava sozinho nos périplos, sempre levava consigo assessores pessoais ou terceirizados que entendiam melhor dos meandros do Direito.
Há absoluta certeza de que ao menos quatro ministros do Supremo não partciparam das conversas – Edson Facchin, atual presidente da Corte, Flávio Dino, Cristiano Zanin e Carmem Lúcia. O ministro Kássio Nunes pode ter participado indiretamente de sondagens sobre as negociações que levaram à redação final do “PL da Dosimetria”, mas por interpostas pessoas (um senador ou um presidente de partido amigos comuns dele e de Paulinho da Força). Os ministros André Mendonça e Luiz Fux, considerados “bolsonaristas” e “não-problemas” nos debates, não entraram nas negociações porque seria desnecessário gastar energia com eles.
Além de se ter limado qualquer referência a “anistia”, estabeleceu-se como chave da construção do texto legal do PL da Dosimetria a abolição do “crime de abolição do Estado Democrático”. No julgamento, a condenação por esse crime – considerada dúbia até mesmo por ministros que condenaram duramente Jair Bolsonaro e seus golpistas amestrados, como Cristiano Zanin e o próprio Gilmar Mendes – a punição por “abolição do Estado Democrático” somou mais de 7 anos à pena do ex-presidente. Inexistindo esse crime e reformada a sentença de Bolsonaro, a pena total cairá naturalmente e reduzirá o total do regime fechado. Foi essa a “mágica” encontrada para destravar as conversas e permitir aos ministros do STF envolvidos nessa espécie (infame) de diálogo interinstitucional que dissessem que não recuavam e nem admitiam ter errado nas penas: apenas, o ordenamento jurídico mudara e isso vinha em benefício dos réus condenados porque a Lei Penal retroage a favor dos apenados.
Ciro Nogueira e Rueda entraram no jogo
De posse do texto final do famigerado projeto-de-lei que conseguiu aprovar na Câmara dos Deputados na madrugada da última quarta-feira, depois de ele ter sido revisado por juristas da confiança de ministros do Supremo, o deputado-relator comunicou ao trio-de-ferro da extrema-direita brasileira – o senador Ciro Nogueira, presidente do PP, o deputado Sóstenes Cavalcante, líder do PL na Câmara e o presidente do União Brasil, Antônio Rueda – que o texto poderia ser votado antes do fim do ano. Essa comunicação se deu entre os dias 24 e 25 de novembro. A partir dali começaram as conversas com o presidente da Câmara, deputado Hugo Motta (Republicanos-PB), para que a pauta de votações da casa legislativa se abrisse a fim de abrigar a votação da proposta (com certeza de apuração).
É certo que o factóide criado pelo senador Flávio Bolsonaro, lançando-se à presidência e anunciando que retiraria da disputa, depois recolocando-se nela, foi uma mise-en-scène criada por ele com coreografia de Valdemar da Costa Neto (presidente nacional do PL) para lançar uma cortina de fumaça na cena política.
No dia 3 de dezembro, tendo já mandado recados a alguns senadores que ia fazê-lo, o ministro Gilmar Mendes anuncia uma decisão cautelar referindo-se a duas Arguições por Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPFs) que questionavam o quórum necessário para a cassação de ministros do Supremo Tribunal Federal e também a universalidade de uso do direito de peticionar a cassação de ministros do STF. Na cautelar, o decano do Supremo amplia o quórum para aprovação desses impeachments e restringe exclusivamente ao Procurador Geral da República a legitimidade para pedir ações que impeçam ministros a seguirem na Corte Suprema. No texto da decisão, contudo, Gilmar Mendes convoca o Congresso a legislar sobre o tema, adaptando a Lei 1.079 (Lei do Impeachment), de 1950, para que fique adequada ao uso sob o regramento da Constituição de 1988. Não era uma advertência ao Senado – era um convite para que a casa legislativa presidida por Davi Alcolumbre (União-AP) tivesse seu protagonismo e seus quinze minutos de fama no “grande debate jurídico” que se desenrolaria a partir da aprovação do PL da Dosimetria que viria na Câmara dos Deputados.
Na noite da última 2ª feira o senador Ciro Nogueira, presidente do PP, e o presidente do União Brasil, Antônio Rueda, conversaram pessoalmente e diretamente com Alcolumbre e com Hugo Motta, presidente da Câmara. Disseram aos dois que a votação do PL da Dosimetria não poderia esperar 2026, ano eleitoral, e que a ida dos parlamentares para o recesso de fim de ano em suas bases, com suas famílias e seus círculos políticos, poderiam fazê-los regressar a Brasília com a cabeça feita contra a redução de penas a Bolsonaro. Ciro e Rueda querem que Flávio Bolsonaro encerre de imediato essa pantomima de se dizer candidato, saia de cena anunciando-se vencedor porque as penas do pai golpista foram reduzidas e permita o início da campanha da oposição ao presidente Lula nas ruas. De preferência, com o governador Tarcísio de Freitas como candidato à presidência, como é a vontade de Nogueira. Se não der com o governador paulista, com a candidatura de Ratinho Júnior (PSD).
Não adiantará recorrer ao STF
Tendo se certificado com os três ministros do Supremo que fizeram parte da urdidura do texto do PL de Paulinho “da Farsa”, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, comprometeu-se a pôr em votação no plenário do Senado o que chegasse de “dosimetria” saído da votação de afogadilho da Câmara. E já deu tratos à bola para fazê-lo: o senador Otto Alencar, presidente da Comissão de Constituição e Justiça da casa exigiu que o PL da Dosimetria passasse por lá, porém indicou como relator do texto o senador Esperidião Amin (PP-SC), um ultrabolsonarista catarinense que nos últimos anos rasgou a própria história e aderiu às formulações mais tresloucadas dos extremistas de direita no Congresso.
Amin não mudará nada no texto que recebeu do deputado Paulinho. Na próxima semana, o Senado votará em plenário do PL da Dosimetria e o mandará à sanção presidencial. O presidente Lula, que é contrário ao texto, pode vetá-lo. Se o fizer, há compromisso de Alcolumbre (presidente do Congresso, além do Senado) de convocar para antes do Carnaval, ainda, uma sessão de derrubada de vetos e promover nova humilhação legislativa ao Executivo.
Por fim, não adiantará recursos ao STF alegando inconstitucionalidades no Projeto de Lei espúrio negociado por Paulinho da Força. Afinal, ao menos três ministros do Supremo que costumam perfilar ao lado da Luz nos julgamentos em que golpistas são réus e nos quais o Estado e Direito tem de ser defendido, tiveram conhecimento das negociações que levaram a essa redução de penas esdrúxulas às figuras de proa do golpe de 8 de janeiro de 2023. Outros três jamais julgariam algo no sentido de prejudicar Jair Bolsonaro – Kássio Nunes, André Mendonça e Luiz Fux. Logo, deu-se o grande acordo nacional em torno da anistia de Bolsonaro, com o Supremo, com tudo (como anteviu o ex-senador Romero Jucá, nos tempos da Lava Jato, no início da esteira golpista que apeou Dilma Rousseff para instalar lá Michel Temer. O mesmo Temer que estava nessa cadeia de comando da anistia espúria aos crimes de Jair Bolsonaro.
Luís Costa Pinto
Jornalista, nasceu no Recife em 1968. Formou-se na Universidade Federal de Pernambuco em 1990. Entre 1988 e 2002, atuou nas principais redações de jornais e revistas do Brasil, destacando-se em Veja, O Globo e Época. Vencedor dos prêmios Esso e Líbero Badaró de Jornalismo e o Jabuti de Livro-Reportagem, é autor de Os Fantasmas da Casa da Dinda (1992, Ed. Contexto), As Duas Mortes de PC Farias (1995, Ed. Best Seller) além de Trapaça – Saga Política no Universo Paralelo Brasileiro (vol. 1, 2019, vol. 2, 2020, vol. 3, 2022), O Vendedor de Futuros (2021) e O Procurador (2024), estes cinco últimos livros pela Geração Editorial. É também roteirista e produtor de podcasts.
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