Abin alertou Bolsonaro sobre risco da covid nos primeiros dias do surto na China

 

Abin alertou Bolsonaro sobre risco da covid nos primeiros dias do surto na China

Documentos até hoje mantidos em sigilo revelam que Abin recomendou que governo brasileiro “reavaliasse risco” da covid-19 e alertou sobre desabastecimento



17/12/2025 | 06h17 

O governo de Jair Bolsonaro sempre soube dos riscos que a covid-19 representava e foi alertado sobre a ameaça de desabastecimento de equipamentos de proteção para médicos, enfermeiras e pacientes.

Desde os primeiros dias da descoberta de um vírus na China, a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) alertou ao Palácio do Planalto sobre o risco da crise sanitária e sugeriu medidas.

A informação faz parte de documentos da agência e que foram obtidos após uma longa batalha judicial pela Fiquem Sabendo, organização sem fins lucrativos especializada em transparência pública.

Em 2023 e depois de os documentos terem sido vetados pelo governo Bolsonaro, a imprensa brasileira publicou informes da Abin que faziam o alerta a partir de março de 2020.

Agora, os relatórios que começam a ser publicados pelo ICL Notícias revelam que a preocupação existia desde os primeiros dias do surto, ainda na China. Brasília foi alertada quase imediatamente sobre a crise.

Ao longo dos próximos dias, o ICL Notícias irá divulgar dezenas de documentos até então mantidos em sigilo.

A ação tardia do governo de Jair Bolsonaro, a recusa em seguir as recomendações internacionais e o negacionismo científico conduziram o país a ter um dos piores índices de contaminações pela covid-19 no mundo. Com mais de 700 mil mortos, o Brasil ainda esteve entre os países com maior número de vítimas fatais.

Retroescavadeira abre vala coletiva em cemitério público na zona oeste de Manaus. Foto: Michael Dantas/AFP

No Supremo Tribunal Federal, o comportamento do governo de Jair Bolsonaro diante da pandemia passou a ser alvo de um exame aberto por parte do ministro Flávio Dino.

Não foi, porém, por falta de alertas que o Brasil acumulou um dos resultados mais dramáticos na covid-19. No relatório de inteligência N° 0011, de 8 de janeiro de 2020, os agentes da Abin já informavam sobre o surto. “Em 3 jan. 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) foi notificada por autoridades chinesas sobre 44 pacientes com pneumonia de etiologia desconhecida na cidade de Wuhan, na província de Hubei”, indicou.

“Entre os pacientes, 11 estavam em estado grave é os demais encontravam-se clinicamente estáveis. Alguns pacientes trabalhavam em um mercado atacadista de frutos do mar”, apontou.

“O mercado possui 600 estabelecimentos, cerca de 1.500 trabalhadores e encontra-se fechado desde 1 jan. 2020, para ações de saneamento e desinfecção ambiental”, disse.

O documento destacava que existiam 59 casos confirmados em Wuhan, dos quais oito já receberam alta hospitalar em 8 de janeiro de 2020. “Há, também, 21 casos suspeitos em Hong Kong, todos com histórico de deslocamento e moradia em Wuhan. Desses, sete já foram descartados por identificação do agente etiológico (outros tipos virais). Ainda entre os casos suspeitos de pneumonia indeterminada, foram relatados oito casos em Macau, dois casos em Taiwan e um na Coréia do Sul”, disse.

“Os sintomas relatados são comuns a várias doenças respiratórias, no entanto, a gravidade apresentada em alguns casos requer prudência, principalmente pelo fato de o agente etiológico ainda não ter sido identificado”, alertou.

Trecho do documento da Abin

Brasil precisa reavaliar riscos

A situação mudaria dramaticamente doze dias depois. Num informe de 20 de janeiro de 2020, a Abin alertava que “autoridades de Wuhan/China emitiram comunicado aumentando para
198 o número de infectados pela pneumonia viral causada por uma nova cepa de coronavírus”.

“Estima-se, no entanto, que o número de pessoas contaminadas seja maior”, apontou. “Os casos confirmados em outros países (Japão e Tailândia) reforçam a ideia de que existiria algum tipo de transmissão entre humanos, ainda que limitada”, insistiu.

Para a Abin, “o potencial de propagação da doença e o aumento do fluxo de chineses, em razão do feriado do Ano Novo Chinês, fez com que alguns países, como os Estados Unidos da América (EUA), reavaliassem os riscos e adotassem medidas de controle em alguns de seus aeroportos”.

“A falta de transparência e a demora no repasse de informações pelo governo chinês compromete a reavaliação do risco de propagação internacional do vírus, afetando inclusive a adoção de medidas preventivas pelas autoridades brasileiras”, advertiu.

O documento aponta que o cenário mais conservador da modelagem estimou que 996 pessoas já estivessem contaminadas na data da publicação da pesquisa. O pior cenário estimou 2.298 pessoas contaminadas. A média dos quatro cenários calculados pelo estudo indica que existam, ao menos, 1.723 casos. “O estudo afirma que a transmissão da doença de pessoa para pessoa não pode ser descartada”, disse.

Num outro trecho, a Abin é taxativa: “Necessidade de reavaliação do risco para o Brasil”.

“A probabilidade de que exista algum tipo de transmissão entre humanos (ainda que
limitada) e o potencial de propagação da doença fez com que alguns países, como os BUA, reavaliassem o risco e adotassem medidas de controle em alguns de seus aeroportos”, disse.

“No Brasil, a comunidade chinesa (incluindo os sino-brasileiros) somam aproximadamente 250 mil pessoas. Os estados de São Paulo e Rio de Janeiro são relevantes pontos de trânsito no fluxo migratório de chineses para outras unidades federativas do Brasil”, afirmou.

“Além disso, o estado do Mato Grosso do Sul é ponto de entrada e trânsito de imigrantes chineses que ingressam no Brasil a partir da fronteira com Bolívia. As províncias de Guandong, Fujian e Zhejiang, na China, são as principais origens dos chineses que migraram para o Brasil na última década”, alertou.

Até aquele momento, a Organização Mundial da Saúde (OMS) desaconselhava a aplicação de quaisquer restrições de viagens ou comércio com os países com casos registrados do novo coronavírus.

“A falta de transparência e a demora no repasse de informações pelo governo chinês
compromete a reavaliação do risco de propagação internacional do vírus, afetando igualmente a adoção de medidas preventivas pelas autoridades brasileiras”, completou.

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Alerta sobre desabastecimento

A situação ficaria ainda mais tensa dois meses depois. No dia 6 de março, o Relatório de Inteligência nº 0091/92200/ABIN/GSIPR alertaria sobre o risco de um desabastecimento no setor hospitalar.

“Devido à epidemia do novo coronavírus na China e à perspectiva de disseminação
global da doença, alguns países fecharam suas fronteiras terrestres e outros se recusaram a receber passageiros provenientes das regiões mais afetadas pela doença. Na China, diversas empresas paralisaram as atividades, e a cidade de Wuhan, epicentro da epidemia, continua em quarentena”, apontou.

“Tal paralisação, ocorrida durante o mês de fevereiro, impactou negativamente o setor produtivo
chinês, que apresentou queda de 14,3% na produção industrial. A tendência é de que os efeitos da epidemia ainda afetem o índice de março, uma vez que a produção ainda não está normalizada no país”, disse o documento.

A Abin constata que “o fato de a China ter ampliado, nos últimos anos, sua importância como fornecedora de produtos médico-hospitalares no mercado global faz com que haja preocupação com o desabastecimento desses artigos”.

“Em 2018, a China foi o segundo maior exportador de medicamentos e produtos hospitalares para os Estados Unidos da América (EUA), o que indica a magnitude que a queda na produção em meio ao cenário de aumento na demanda poderia ter”, alertou.

O documento não deixa dúvidas do impacto sobre o país. “No Brasil, há crescente dependência de importações de produtos médico-hospitalares, sobretudo de alta tecnologia, o que representa vulnerabilidade da política nacional de saúde. Ademais, nos últimos anos, o Brasil vem perdendo competitividade no nicho de mercado em que se especializou ao longo das últimas décadas – produtos de baixo valor tecnológico, produzidos em larga escala e com baixas margens de lucro – para países como China e Singapura. Ambos os países são focos da COVID-19 e podem ter suas cadeias produtivas afetadas”, disse.

O documento revela que, em 28 de janeiro de 2020, representantes da embaixada chinesa solicitaram EPIs (equipamentos de proteção individual), em caráter de doação, ao Ministério da Saúde do Brasil. “Inicialmente, os principais produtos em falta na China eram máscaras N95 e óculos de proteção. Com a evolução da epidemia, suprimentos como gorros, luvas e botas também se tornaram escassos. Para suprir a demanda por esses produtos, a China reduziu a tarifa sobre alguns produtos importados dos EUA. A tarifa original, que era de 10% em 2019, foi ajustada para 2,5% em alguns produtos”, explicou.

“Além dos EPIs, há temor que faltem insumos farmacêuticos para produção de medicamentos e correlatos. Os medicamentos de ação ampla mais recomendados como tratamento offlabel (indicação medicamentosa não padronizada) da COVID-19 são: Ribavirina, que é um agente antiviral usado no tratamento da hepatite C; Lopinavir/Ritonavir, usados no tratamento do HIV; Oseltamivir, utilizado no tratamento da influenza; e Interferon beta-1b recombinante, que possui atividade antiviral e imunomoduladora”, disse.

A Abin apontou que, de fato, no Brasil, o Ministério da Saúde planejava a compra do triplo da média de consumo de EPIs para noventa dias, como medida de prevenção a eventual pandemia de COVID-19. “Parte da compra, no entanto, não pôde ser concretizada, por falta da oferta de máscaras de proteção no mercado”, disse.

O documento revelou que estava prevista uma reunião entre o Ministério da Saúde e representantes da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) para verificar se o Brasil pode fabricar equipamentos de proteção individual (EPIs) e diminuir a dependência de importação.

O informe servia de alerta. “A perspectiva de disseminação global da COVID-19 e sua conversão em pandemia deve ampliar as restrições de viagens e interferir o fluxo comercial entre os países. Além disso, há perspectiva de escassez de produtos médico-hospitalares em decorrência do aumento da demanda. Os setores de fabricação e consumo de produtos médico-hospitalares e de insumos farmacêuticos no Brasil podem sofrer impactos negativos caso não haja ajuste na produção interna para atendimento da demanda e na busca por fornecedores alternativos” completa.

bolsonaro
Bolsonaro promove hidroxicloroquina em live. Foto: Reprodução

Alguns meses depois, porém, a situação interna da Abin seria profundamente modificada. Os agentes foram orientados a produzir informes “positivos” sobre a cloroquina, sob o governo de Jair Bolsonaro, e uma decisão de não seguir as orientações resultou na supressão dos informes. A agência ainda elaborou relatórios de inteligência alertando ao Palácio do Planalto de que a aposta do então governo pelo remédio não funcionava. Mas jamais foram ouvidos.

Esses últimos dados fazem parte de um documento reunido pela agência e que, sem alarde, foi publicado oficialmente pela Abin. Em sua introdução, a constatação: houve uma tentativa deliberada do governo de suprimir os alertas feitos pela agência diante de uma doença que, ao longo dos meses, deixou 700 mil mortos.

Naquele momento, a agência era comandada por Alexandre Ramagem Rodrigues, que liderou a Abin entre 2019 e 2022. Em 21 de novembro de 2024, ele foi indiciado por abolição violenta do estado democrático de direito, golpe de estado e organização criminosa. Hoje, vive nos EUA.

Como foram obtidos os documentos

O acesso aos documentos da Abin ocorreu depois de seis anos de batalha por parte da Fiquem Sabendo e é considerado como um divisor de águas para a transparência no Brasil.

A ação segue tramitando para garantir que todos os documentos sejam entregues, sem tarjas e na íntegra, como é o caso ainda de vários informes.

Documentos classificados são informações públicas que, por motivos de segurança da sociedade ou do Estado, são temporariamente mantidas em sigilo. Os documentos obtidos já foram desclassificados e, portanto, estão fora do prazo de sigilo. De fato, entre 2014 e 2020, mais de 400 mil documentos federais perderam o sigilo.

Mas o acesso nem sempre está garantido. Assim, o projeto Sem Sigilo começou em 2019, quando a entidade convocou voluntários para pedir documentos cujo prazo de sigilo expirou. A iniciativa coletou milhares de páginas de dezenas de órgãos, mas enfrentaram resistência de entidades como Abin, GSI, Ministério da Defesa, Forças Armadas, Polícia Federal e Itamaraty.

Em 2020, eles ajuizaram uma ação contra a Abin. A ideia era enfrentar o órgão mais resistente à transparência pública porque apostavam que, se ganhassem, outros cairiam por gravidade.

Em 2021, o MPF acolheu parcialmente os argumentos e sugeriu que a Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência (CCAI), do Congresso, analisasse os documentos. Corretamente, o Congresso se recusou, afirmando não ser sua competência.

Em 2023, a ação sofreu uma derrota em primeira instância. A Justiça aceitou o argumento da União de que a Abin poderia decidir sozinha o que divulgar ou não — mesmo contrariando o texto da LAI.

Mas, em maio de 2025, a 6ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) acatou o pedido e condenou, por unanimidade, a União e a Abin a entregar um conjunto de documentos mantidos ilegalmente sob sigilo.

A decisão tem um impacto profundo, já que:

Estabelece jurisprudência: é a primeira decisão em nível federal que reafirma que nenhum órgão está acima da LAI — e que seus prazos não são opcionais.

Cria precedente: o entendimento agora pode ser replicado para cobrar outros órgãos que seguem descumprindo a Lei, como o Itamaraty e as Forças Armadas.

Desmonta o sigilo eterno: reafirma que a transparência é a regra, e o sigilo, a exceção — com prazo.


https://iclnoticias.com.br/abin-alertou-bolsonaro-sobre-risco-da-covid-19/

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