Barroso: a conciliação, sim, sem jamais agredir os direitos fundamentais
Procurem no dicionário o sentido da palavra "soberbo". Uma das acepções nos aponta "arrogante" como sinônimo. Mas também define o que tem "aspecto grandioso", o "belo", o "magnífico", o "valioso", o "preciso", o que demonstra "destemor e bravura". Roberto Barroso, novo presidente do Supremo, fez nesta quinta um discurso de posse soberbo. Soube falar ao presente, acenou para o futuro e expôs — e isto me agradou muito especialmente — a natureza da Constituição da República Federativa do Brasil, tantas vezes vilipendiada pela ignorância... soberba! Convidou ao diálogo dos fortes, não ao conciliábulo entre chantagistas e covardes.
DA NATUREZA DO TEXTO
A crítica mais recorrente à Carta aponta a sua largueza e a sua disposição de abarcar todos os setores da vida pública, discorrendo longamente sobre uma gigantesca lista de direitos, sem que liste também as obrigações. É uma consideração obviamente demeritória, como se o Brasil, um gigante indômito e ávido por grandes feitos, se visse atado por amarras manipuladas por algum ente metafísico.
De saída, noto que vocês jamais ouviram essa crítica sair da boca dos despossuídos. Ela costuma frequentar a pena, a militância e o "lobby" dos poderosos, aqueles mesmos que, com impressionante despudor, insistem em que uma das sociedades mais desiguais da Terra está condenada ao atraso porque haveria por aqui um excesso de benefícios sociais. Com a pança satisfeita de iniquidades, ignoram, por exemplo, que mais da metade da mão-de-obra hoje no país está na informalidade, o que representa, na esmagadora maioria dos casos, em déficit de liberdade, de bem-estar, de respeito.
Não temos proteção demais, à diferença do que sustenta essa ladainha rasa e interessada, mas de menos. É preciso, isto sim, que aquilo que está consagrado como garantia e valor ganhe uma dimensão prática e proteja a todos, sem distinção. Ele lembrou em seu discurso o que nos iguala às outras democracias:
"A Constituição estrutura o Estado, demarca a competência dos Poderes e define os direitos e garantias dos cidadãos. Todas as constituições democráticas fazem isso, a brasileira inclusive."
Mas destacou também o que nos distingue:
"Porém, a nossa Constituição vai bem além: ela contempla, também, o sistema econômico, o sistema tributário, o sistema previdenciário, o sistema de educação, o sistema de preservação ambiental, da cultura, dos meios de comunicação, da proteção às comunidades indígenas, da família, da criança, do adolescente, do idoso, em meio a muitos outros temas."
Nesse ponto, o crítico de que falo acima poderia protestar: "Pois é; isso é muito ruim. O Reino Unido tem lá suas normas gerais; o resto é jurisprudência. Por que precisamos de um livrão?" A questão, obviamente, não é um arrazoado técnico, acadêmico, mas só uma diatribe dessas que se distribuem por aí, em papo-furado na Internet. Países têm sua história.
O ministro afirmou:
"Incluir uma matéria na Constituição é, em larga medida, retirá-la da política e trazê-la para o direito. Essa é a causa da judicialização ampla da vida no Brasil. Não se trata de ativismo, mas de desenho institucional. Nenhum Tribunal do mundo decide tantas questões divisivas da sociedade. Contrariar interesses e visões de mundo é parte inerente ao nosso papel. Nós sempre estaremos expostos à crítica e à insatisfação, e isso faz parte da vida democrática. Por isso mesmo, a virtude de um tribunal jamais poderá ser medida em pesquisa de opinião."
O diagnóstico é preciso. Eu faria no que vai acima apenas um ajuste: a "matéria" pode ser encaminhada para um terreno sem que deixe o outro. Os embates a que temos assistido e os esforços para desqualificar o tribunal nos dizem isso.
"Mas você não imagina, Reinaldo, um outro desenho do sistema de Justiça? Posso imaginar quantas coisas quiser, mas reconheço — e por isto aponto o acerto do ministro — o "ethos" de nosso ordenamento. Mesmo com os mais de 700 mil mortos em decorrência da Covid no Brasil, indago: quantas vidas a amplidão da nossa Lei Maior salvou, à medida que o Supremo foi chamado a arbitrar — e sempre dentro das prerrogativas de que dispõe — sobre vacina, distanciamento social, auxilio emergencial, conflito de competência entre as esferas federativa etc? E todas as decisões, sem exceção, serviram à proteção de direitos fundamentais.
AUTOCONTEÇÃO E DEMOCRACIA
Em meio à balbúrdia provocada por arruaceiros que transformaram o STF no principal alvo de suas investidas, o novo presidente da Corte observou com pertinência:
"É imperativo que o Tribunal aja com autocontenção e em diálogo com os outros Poderes e com a sociedade, como sempre procuramos fazer e pretendo intensificar. Numa democracia não há Poderes hegemônicos. Garantindo a independência de cada um, presidente Arthur Lira, presidente Rodrigo Pacheco, conviveremos em harmonia, parceiros institucionais pelo bem do Brasil."
Depois do 8 de janeiro, seria impossível eviar o tema da defesa da democracia:
"E, também, estamos sempre juntos, como lembrou o ministro Gilmar Mendes na sua bela oração, em sólida unidade na defesa da democracia. A democracia constitucional é a composição de valores diversos, duas faces da mesma moeda. De um lado, soberania popular, eleições livres e governo da maioria. De outro, poder limitado, Estado de direito e respeito aos direitos fundamentais. Um equilíbrio delicado e essencial. Em todo o mundo, a democracia constitucional viveu momentos de sobressalto, com ataques às instituições e perda de credibilidade. Por aqui, as instituições venceram, tendo ao seu lado a presença indispensável da sociedade civil, da Imprensa e do Congresso Nacional. E, justiça seja feita, na hora decisiva, as Forças Armadas não sucumbiram ao golpismo. Costumamos identificar os culpados de sempre: extremismo, populismo, autoritarismo... E de fato eles estão lá."
Barroso foi um dos magistrados mais miseravelmente atacados pela máquina de difamação bolsonarista, que passou a lhe atribuir, como se dotado fosse de superpoderes, a derrota do voto impresso no Parlamento. Parte da campanha de desqualificação do sistema de votação se deu quando presidia o Tribunal Superior Eleitoral. De fato, o arreganho contra as instituições democráticas se espalha mundo afora, capitaneado, no mais das vezes, pelo populismo de extrema-direita — isso digo eu, não ele. Mas também é verdade que os criminosos foram derrotados. Mas convém não descuidar da vigilância — esse sou eu de novo...
Fez bem em destacar que "as Forças Armadas não sucumbiram", apensando à constatação um adjunto adverbial: "na hora decisiva". Estou entre os que avaliam, mas isto não cabe ao ele falar, que a leniência dos fardados com a arruaça, inclusive com uma nota pusilânime dos três comandantes militares no dia 11 de novembro, concorreu para produzir o resultado de 8 de janeiro. Mas, é fato, "não sucumbiram" — ainda que isso possa se dever a injunções que não tinham a ver com a vontade, mas com a falta de condições objetivas para sustentar um eventual golpe de Estado. De toda sorte, tivesse havido a virada de mesa, teria sido um evento catastrófico para o país, mesmo que durasse pouco.
DEFINIÇÃO FELIZ
Como tenho dito aqui e em toda parte, restou à extrema-direita apenas o discurso dos chamados "costumes". Sua pauta consiste em mobilizar a sociedade contra os perigos que representariam, vejam que coisa!, justamente as minorias destituídas de direitos. Alguns temas que mobilizam os piores rancores -- e já se falou aqui do caráter analítico do nosso texto constitucional -- estiveram, estão ou estarão no Supremo: descriminação de maconha para consumo; aborto; marco temporal para demarcação de terras indígenas; união homoafetiva; criminalização da homofobia e transfobia etc.
Tenta-se até, num movimento de espantosa delinquência intelectual e política, votar uma PEC que transformaria o Congresso numa corte revisora do Supremo. É o tipo de coisa que não chega nem a estar errada de tão estúpida. Trata-se, como afirmei ontem aqui, de um movimento de intimidação do Supremo. Barroso reiterou um compromisso que ouso chamar de moral e ético. Numa passagem particularmente feliz, definiu assim os direitos fundamentais: "são os direitos humanos incorporados à ordem jurídica interna." Mais ainda: são "a reserva mínima de justiça de uma sociedade, em termos de liberdade, igualdade e acesso aos bens materiais e espirituais básicos para uma vida digna".
O ministro reiterou os compromissos daquela Casa:
"Temos sido parceiros da ascensão das mulheres, na luta envolvente por igual respeito e consideração, no espaço público e no espaço privado, bem como contra a violência doméstica e sexual. Também temos atuado, sempre com base na Constituição, em favor do heroico esforço da população negra do país por reconhecimento e iguais oportunidades, validando as ações afirmativas, imprescindíveis para superar o racismo estrutural que a escravização e sua abolição sem inclusão acarretaram. Do mesmo modo, a comunidade LGBTQIA+ obteve neste Tribunal o reconhecimento de importantes direitos, com destaque para a equiparação das uniões homoafetivas às uniões estáveis convencionais, tendo por desdobramento a possibilidade do casamento civil".
Há quem queira que o tribunal deveria passar longe de todas essas questões, dissociando-as, na expressão do agora presidente, de uma "reserva mínima de justiça" que deve assistir essas populações. E não fugiu da demarcação de terras indígenas, a causa mais recente que motivou a declaração de guerra da vanguarda do atraso:
"Povos indígenas passaram a ter a sua dignidade reconhecida, bem como o direito a preservarem sua cultura e, ao menos, uma parte de suas terras originárias. Atuamos, ainda, para que pessoas com deficiência sejam valorizadas na sua diferença, no esforço de se proporcionar acessibilidade e inclusão. E a proteção ambiental foi igualmente objeto de atenção do Supremo"
Essas, destacou o orador, não são causas "progressistas", mas "da humanidade, da dignidade humana, do respeito e consideração por todas as pessoas."
PACTO CIVILIZATÓRIO
Mas é possÍvel conciliar os difrentes? Respondeu:
"A democracia venceu, e precisamos trabalhar pela pacificação do país. Acabar com os antagonismos artificialmente criados para nos dividir. Um país não é feito de nós e eles. Somos um só povo, no pluralismo das ideias, como é próprio de uma sociedade livre e aberta. 'Bastar-se a si mesmo é a maior solidão', escreveu o poeta. O sucesso do agronegócio não é incompatível com a proteção ambiental. Pelo contrário. O combate eficiente à criminalidade não é incompatível com o respeito aos direitos humanos."
Mais:
"No interesse da justiça, pretendo ouvir a todos, trabalhadores e empresários, comunidades indígenas e agricultores, produtores rurais e ambientalistas, gente da cidade e do interior. E, também, conservadores, liberais e progressistas. Ninguém é dono da verdade, ninguém tem o monopólio do bem e da virtude. A vida na democracia é a convivência civilizada dos que pensam diferente. E quem pensa diferente de mim não é meu inimigo, mas meu parceiro na construção de uma sociedade aberta, plural e democrática."
ENCERRO
O discurso traduz o que a civilização democrática pode produzir de melhor. As discordâncias são próprias da vida em sociedade, mas se define um método, com regras conhecidas, para que possam ser expostas e exercitadas.
Torço, é claro!, para que vocações autoritárias se deixem convencer pelo avanço e pelo pacto civilizatórios. Mas também sou realista. As circunstâncias da política brasileira dos últimos anos levaram ao florescimento — e como são flores do mal e dos maus! — de uma militância fanaticamente reacionária. Ela vê na defesa dos direitos fundamentais — "que são os direitos humanos incorporados à ordem jurídica" — mero território para a guerra ideológica, de sorte que combatê-los passa a ser uma forma de enfrentar o inimigo. Ora, a consequência inescapável dessa postura são a discriminação e a violência política, que têm de ser enfrentados e vencidos.
Opinião
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OLHAR APURADO
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