Site veicula mentiras com pose de quem ensina ética jornalística
Só há uma coisa pior do que o jornalismo primário. É o jornalismo inocente, que separa o joio do trigo e publica o joio. Foi o que ocorreu com a "revista eletrônica" Consultor Jurídico. Cavalgando mensagens reveladas pela Vaza Jato, o site veiculou um lote de mentiras no último sábado (30).
A hipotética notícia insinuou que os procuradores da força-tarefa negociaram com jornalistas a divulgação de informações sobre denúncia formulada contra Lula. O pressuposto era o de que os destinatários dos dados, entre eles o signatário desta coluna, desceriam "a lenha" no acusado.
A coisa ocorreu em 26 de novembro de 2018, data em que Lula foi denunciado pela Procuradoria por alegada lavagem de dinheiro num negócio efetivado na Guiné Equatorial. De acordo com a suposta notícia, Deltan Dallagnol e procuradores que estavam sob sua coordenação "comemoraram o fornecimento exclusivo de informações para o 'Jornal Nacional', da Rede Globo, e desenharam os desdobramentos da notícia em outros veículos."
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"JN é uma ótima!!!", anotou a procuradora Laura Tesler numa das mensagens reproduzidas pelo site. "Mas de qq forma é bom Tb depois dar uma provocada no Josias, Miriam Leitão, etc, para descerem a lenha".
Noutro trecho, Deltan enumerou suas opções: "1. Rechecarmos tudo e fazermos release logo antes do JN. 2. Liberar Vladimir Neto pra soltar. 3. Passar pra Josias com embargo, pra soltar no começo do JN. 4. Vcs fazerem um vídeo na FT falando os nomes e que absurdo seria e eu posto."
Curiosamente, a denúncia no caso da Guiné Equatorial foi protocolada pelo time da Lava Jato de São Paulo, não de Curitiba. O esforço para tisnar a imagem de profissionais como Miriam Leitão não encontra respaldo na realidade. Em relação a mim, nada do que consta das mensagens tampouco é real.
Ao tirar do lero-lero dos procuradores suas próprias confusões, o site entrou no mundo paralelo com o pé esquerdo. Jamais conversei com a procuradora Laura Tesler. Deltan tampouco teve a ousadia de me propor o embargo hilário. O mais irônico é que eu não publiquei uma mísera linha sobre a denúncia referente à Guiné Equatorial.
Ao deixar de ouvir os personagens de sua pretensa notícia, o Consultor Jurídico praticou o jornalismo primário. Escutar o outro lado é regra banal do jornalismo. Ao se abster de realizar uma pesquisa simplória para verificar se as mensagens de procuradores aloprados ornavam com a realidade, o site enveredou pelo jornalismo inocente. Comportou-se como as tias do Zap.
O título da notícia de fancaria é temerário: "Lava jato negociava com jornalistas para 'descer a lenha' em Lula". Acima do título, anotou-se um trocadilho que flerta com o Código Penal: "Fatura exposta".
O perigo da imprensa inocente é tropeçar na meia verdade e publicar exatamente a metade que é mentirosa. Quando uma publicação chamada Consultor Jurídico faz isso com ares de quem presta consultoria sobre ética jornalística, a fatura fica realmente exposta.
Opinião
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