Reinaldo Azevedo Ao Vivo -20/09/23. Por que Lula fez o seu mais vigoroso discurso na ONU, sete vezes aplaudido… -

 Lula e Biden em defesa do trabalho; os reaças babões em surto… - 


Por que Lula fez o seu mais vigoroso discurso na ONU, sete vezes aplaudido

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Lula faz discurso impecável na abertura da Assembleia-Geral da ONU; os críticos tiveram de se vergar às evidências
Lula faz discurso impecável na abertura da Assembleia-Geral da ONU; os críticos tiveram de se vergar às evidências Imagem: Ricardo Stuckert/PR

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez o melhor de todos os discursos na sua longa trajetória de aberturas da Assembleia Geral das Nações Unidas. Isso fica evidenciado pelas sete vezes em que sua fala foi interrompida por aplausos; pela óbvia simpatia expressa pelos chefes de Estado e representações presentes ao evento; pela longa fila de dirigentes mundiais que já tinham agendado uma reunião com o brasileiro e que tentaram fazê-lo depois de sua participação; pela evidente convergência entre a sua agenda e a do presidente dos EUA, Joe Biden — guerra da Ucrânia à parte; pela anuência do presidente americano e do secretário-geral da ONU, Antônio Gutierres, ao pleito histórico do Brasil de reformar os organismos multilaterais, inclusive aquele em que todos eles falaram.

Há um mau humor evidente de setores da imprensa com Lula, especialmente aqueles pautados pelo temor de que o PT venha a constituir de tal sorte uma força hegemônica que reste pouco espaço para a ascensão de um grupamento de centro. Nesse ponto, fico tentado a pensar se essa vertente centrista já não é o próprio PT. Mas esse já seria outro artigo. O fato é que, prestem atenção!, segundo alguns críticos, a intervenção de Lula já era um desastre antes mesmo que ele tivesse aberto a boca para fazer a saudação inicial. Os textos na linha "quem esse Lula pensa que é" e "mais uma vez se viu a agenda do atraso da diplomacia furada Sul-Sul" já estavam prontos. Deram com os burros n'água.

À medida que Lula foi falando e que ia sendo interrompido por aplausos entusiasmados e que as questões iam sendo elencadas pelo presidente brasileiro, parece que o ânimo do maldizer foi sendo refreado — exceção feita ao esgoto que corre a céu aberto em uma página ou outra da Internet. Ali estava — reconheçam porque o constrangimento será menor — o principal líder do chamado "Sul Global", exceção feita, claro!, ao presidente chinês, Xi Jinping, mas o jogo de que este é protagonista é de outra natureza.

Lula evitou perder-se em questões domésticas. Eu mesmo tinha certo receio de que levasse para a arena algumas pendengas que nos dizem respeito, mas não ao mundo — o modo, por exemplo, como "Uzmercáduz" impõem a sua taxa especulativa e escorchante de juros — ou as diatribes da extrema-direita nativa e suas momices de circo mambembe. Mas não. A ascensão de fascistoides (a palavra é minha, não dele) compôs a sua fala, mas, como deveria ser, numa perspectiva global.

O desenvolvimento sustentável e as dificuldades para o mundo cumprir as metas até 2030; a necessidade do combate à fome, que atinge 730 milhões; as imposições dos países ricos nas suas negociações com os mais pobres; o peso das economias superdesenvolvidas no desequilíbrio climático e o não cumprimento das promessas que fizeram às nações em desenvolvimento; a necessidade de reformar a própria ONU e os mecanismos multilaterais; a grotesca concentração de renda que faz com que os 10 maiores bilionários do mundo detenham mais do que somam os 40% mais pobres da humanidade; essa pornográfica desigualdade traduzida também na questão ambiental, de sorte que os 10% mais ricos emitem sozinhos mais de 50% do carbono; a ascensão da extrema-direita autoritária mundo afora, especialmente à esteira de desregulação selvagem do mercado de trabalho — ele empregou a palavra "neoliberalismo"... Tudo isso estava num discurso denso, organizado, aplaudido como raramente, ou nunca, se viu na ONU. Fiquemos nos seus termos.

A FOME E DESIGUALDADE
"A fome, tema central da minha fala neste Parlamento Mundial 20 anos atrás, atinge hoje 735 milhões de seres humanos, que vão dormir esta noite sem saber se terão o que comer amanhã. O mundo está cada vez mais desigual. Os 10 maiores bilionários possuem mais riqueza que os 40% mais pobres da humanidade. O destino de cada criança que nasce neste planeta parece traçado ainda no ventre de sua mãe. A parte do mundo em que vivem seus pais e a classe social à qual pertence sua família irão determinar se essa criança terá ou não oportunidades ao longo da vida. Se irá fazer todas as refeições ou se terá negado o direito de tomar café da manhã, almoçar e jantar diariamente. Se terá acesso à saúde, ou se irá sucumbir a doenças que já poderiam ter sido erradicadas."


MASSA DE DESERDADOS
"O neoliberalismo agravou a desigualdade econômica e política que hoje assola as democracias. Seu legado é uma massa de deserdados e excluídos. Em meio aos seus escombros surgem aventureiros de extrema direita que negam a política e vendem soluções tão fáceis quanto equivocadas. Muitos sucumbiram à tentação de substituir um neoliberalismo falido por um nacionalismo primitivo, conservador e autoritário. Repudiamos uma agenda que utiliza os imigrantes como bodes expiatórios, que corrói o Estado de bem-estar e que investe contra os direitos dos trabalhadores. Precisamos resgatar as melhores tradições humanistas que inspiraram a criação da ONU. Políticas ativas de inclusão nos planos cultural, educacional e digital são essenciais para a promoção dos valores democráticos e da defesa do Estado de Direito."

QUESTÃO CLIMÁTICA
"Agir contra a mudança do clima implica pensar no amanhã e enfrentar desigualdades históricas. Os países ricos cresceram baseados em um modelo com altas taxas de emissões de gases danosos ao clima. A emergência climática torna urgente uma correção de rumos e a implementação do que já foi acordado. Não é por outra razão que falamos em responsabilidades comuns, mas diferenciadas. São as populações vulneráveis do Sul Global as mais afetadas pelas perdas e danos causados pela mudança do clima. Os 10% mais ricos da população mundial são responsáveis por quase a metade de todo o carbono lançado na atmosfera."
(...)
Queremos chegar à COP 28 em Dubai com uma visão conjunta que reflita, sem qualquer tutela, as prioridades de preservação das bacias Amazônica, do Congo e do Bornéu-Mekong a partir das nossas necessidades. Sem a mobilização de recursos financeiros e tecnológicos não há como implementar o que decidimos no Acordo de Paris e no Marco Global da Biodiversidade. A promessa de destinar 100 bilhões de dólares - anualmente - para os países em desenvolvimento permanece apenas isso, uma promessa. Hoje esse valor seria insuficiente para uma demanda que já chega à casa dos trilhões de dólares."

ORGANISMOS MULTILATERAIS
"O princípio sobre o qual se assenta o multilateralismo - o da igualdade soberana entre as nações - vem sendo corroído. Nas principais instâncias da governança global, negociações em que todos os países têm voz e voto perderam fôlego. Quando as instituições reproduzem as desigualdades, elas fazem parte do problema, e não da solução. No ano passado, o FMI disponibilizou 160 bilhões de dólares em direitos especiais de saque para países europeus, e apenas 34 bilhões para países africanos. A representação desigual e distorcida na direção do FMI e do Banco Mundial é inaceitável. Não corrigimos os excessos da desregulação dos mercados e da apologia do Estado mínimo. As bases de uma nova governança econômica não foram lançadas."
(...)
"O Conselho de Segurança da ONU vem perdendo progressivamente sua credibilidade. Essa fragilidade decorre em particular da ação de seus membros permanentes, que travam guerras não autorizadas em busca de expansão territorial ou de mudança de regime. Sua paralisia é a prova mais eloquente da necessidade e urgência de reformá-lo, conferindo-lhe maior representatividade e eficácia."


QUESTÕES DOMÉSTICAS
Lula tocou, sim, em algumas questões domésticas, mas sempre vis-à-vis o que se dá no resto do mundo, quando falou, por exemplo, sobre o triunfo da democracia no Brasil, os esforços contra a desigualdade e a matriz energética majoritariamente limpa de sua economia. Destaco:
A DEMOCRACIA: "Se hoje retorno na honrosa condição de presidente do Brasil, é graças à vitória da democracia em meu país. A democracia garantiu que superássemos o ódio, a desinformação e a opressão. A esperança, mais uma vez, venceu o medo. Nossa missão é unir o Brasil e reconstruir um país soberano, justo, sustentável, solidário, generoso e alegre."

A IGUALDADE: "No Brasil, estamos comprometidos a implementar todos os 17 objetivos de desenvolvimento sustentável, de maneira integrada e indivisível. Queremos alcançar a igualdade racial na sociedade brasileira por meio de um décimo oitavo objetivo que adotaremos voluntariamente. Lançamos o plano Brasil sem Fome, que vai reunir uma série de iniciativas para reduzir a pobreza e a insegurança alimentar. Entre elas, está o Bolsa Família, que se tornou referência mundial em programas de transferência de renda para famílias que mantêm suas crianças vacinadas e na escola. Inspirados na brasileira Bertha Lutz, pioneira na defesa da igualdade de gênero na Carta da ONU, aprovamos a lei que torna obrigatória a igualdade salarial entre mulheres e homens no exercício da mesma função. Combateremos o feminicídio e todas as formas de violência contra as mulheres. Seremos rigorosos na defesa dos direitos de grupos LGBTQI+ e pessoas com deficiência. Resgatamos a participação social como ferramenta estratégica para a execução de políticas públicas."

ENERGIA LIMPA: "No Brasil, já provamos uma vez e vamos provar de novo que um modelo socialmente justo e ambientalmente sustentável é possível. Estamos na vanguarda da transição energética, e nossa matriz já é uma das mais limpas do mundo. 87% da nossa energia elétrica provem de fontes limpas e renováveis. A geração de energia solar, eólica, biomassa, etanol e biodiesel cresce a cada ano. É enorme o potencial de produção de hidrogênio verde. Com o Plano de Transformação Ecológica, apostaremos na industrialização e infraestrutura sustentáveis. Retomamos uma robusta e renovada agenda amazônica, com ações de fiscalização e combate a crimes ambientais. Ao longo dos últimos oito meses, o desmatamento na Amazônia brasileira já foi reduzido em 48%. O mundo inteiro sempre falou da Amazônia. Agora, a Amazônia está falando por si."

Depois de quatro anos de vexame, em que um dos braços do então governante prometeu e cumpriu o intento de transformar o país num pária internacional, o Brasil realmente está de volta ao cenário internacional. O desafio não é pequeno, e as questões politicas ainda estão sob o impacto dos anos de delinquência. Também a análise política está tomada por uma névoa de má consciência, a confundir a objetividade com a simples maledicência, razão por que, como escrevi acima, o discurso de Lula já era considerado ruim antes que fosse conhecido. Mas aí veio o peso da realidade. Foi preciso que uma recepção positiva realmente inédita à sua fala — e à de qualquer governante em muito tempo — acordasse algumas penas do rancor preguiçoso. O mundo ouviu antes.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.


OLHAR APURADO

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