O professor em risco: a aprovação automática está vindo aí
O professor em risco: a aprovação automática está vindo aí
Por Valter Mattos da Costa*
A decisão recente da Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro (SEEDUC RJ) expressa primeiramente no Decreto nº 49.994, de 17 de novembro de 2025, instituiu a chamada Política Estadual Excepcional de Progressão Parcial. O nome técnico suaviza o impacto real: trata-se de uma aprovação automática disfarçada, ainda que revestida de expressões como “progressão parcial”, “regime especial de recuperação” e “atividades complementares obrigatórias”.
Dias depois do decreto, a SEEDUC publicou a Resolução de 19 de novembro de 2025, aprofundando e ampliando o escopo da medida. O documento estabelece que estudantes da 1ª e 2ª séries podem avançar com até seis retenções distintas, enquanto a 3ª série admite progressão mesmo com três reprovações. A norma, que se apresenta como “excepcional”, mas acaba por institucionalizar um afrouxamento estrutural sem precedentes.
A mesma resolução institui ainda um sistema de bonificação financeira para as escolas que atingirem metas de aprovação quase totais. Na prática, trata-se de um pressão institucional para eliminar reprovações, forcando gestores e docentes a produzir números alinhados ao discurso oficial, independentemente das condições reais de aprendizagem.
O texto normativo determina que estudantes do Ensino Médio avancem de série, como foi dito, mesmo com reprovações, desde que cumpram atividades de recuperação definidas pelas próprias escolas no ano seguinte. Na prática, essa decisão transfere para o chão de fábrica docente, a escola, uma conta que o Estado não quer pagar: a da responsabilidade pela aprendizagem em condições impossíveis de trabalho.
A medida sequer passou por diálogo com a categoria; foi mais uma imposição verticalizada, típica de quem governa a educação como se a escola fosse um laboratório de decretos e não um espaço de trabalho coletivo.
A realidade das escolas públicas já opera no limite. A carga de trabalho é imensa, a remuneração fica abaixo da responsabilidade exigida e a estrutura é frágil. Cada ano, novos sistemas, plataformas, formulários e exigências chegam do nível central como se professores fossem funcionários de uma linha de montagem digital. O que chamo de Pedagogia da Métrica (a antítese da Pedagogia de Paulo Freire) se infiltra em cada meta, cada planilha, cada reunião, como se a educação pudesse ser reduzida a indicadores numéricos.
Enquanto isso, a sala de aula é um campo de tensões permanentes. O desrespeito frequente, fruto de um meio estressor crescente, aumenta o desgaste emocional do professor. O mal-estar docente se torna rotina. Adoecimento físico e psíquico se acumulam como parte invisível do calendário escolar. É esse trabalhador fragilizado que agora terá de lidar com um novo dispositivo burocrático que promete facilitar a vida do estudante (que tem como desculpa oficial, diminuir a evasão escolar), mas, na verdade, aprofunda a sobrecarga do professor.
Não bastasse o Novo Ensino Médio ter introduzido pseudodisciplinas e novos componentes curriculares — como eletivas e Projeto de Vida — retirando tempo das áreas cobradas no ENEM, agora a SEEDUC acrescenta mais um mecanismo que desestrutura o trabalho docente.
A “progressão parcial” impõe ao docente a responsabilidade de acompanhar, planejar, executar, corrigir e registrar atividades suplementares de estudantes que não dominaram o conteúdo regular.
O governo anuncia uma solução pedagógica; o professor recebe uma lista adicional de tarefas. O discurso fala em inclusão; a sala de aula mostra apenas mais improvisos para mascarar a ausência de condições reais de ensino.
O problema não está em permitir que estudantes avancem com pendências – não se trata de se defender uma postura “punitivista”. A progressão em condições especiais, existe há décadas (chamamos de dependência etc.). O problema está no uso estratégico da norma para produzir números, ocultar o fracasso estrutural da política educacional e transferir a culpa para o professor quando algo der errado. Ao final do ano, os índices de aprovação sobem, as estatísticas são celebradas e os relatórios apontam avanços (para a glória do governante do momento). No entanto, por trás desses números, a precariedade permanece intacta.
Trata-se de uma política que tenta esconder o óbvio: não há professores suficientes, as escolas estão sucateadas e o Estado se recusa a enfrentar o investimento necessário para garantir o direito à educação. Ao maquiar indicadores, a gestão pública adia o enfrentamento do problema e empurra para o professor a responsabilidade por uma crise que não começou na sala de aula – mas termina nela.
Essa decisão do Rio de Janeiro não é isolada. Alguns estados brasileiros já adotam mecanismos semelhantes, sempre com a mesma lógica: menos reprovação, mais aprovação numérica, mais indicadores positivos para apresentar ao país. É a política nacional da dissimulação pedagógica. O discurso é moderno; a prática é a mesma de sempre: transformar o professor em amortecedor de tensões sociais que o Estado não quer enfrentar.
O desinteresse estudantil, já alto, tende a aumentar quando o próprio sistema escolar comunica que o esforço não é necessário. Quando a mensagem institucional é “você avança mesmo sem aprender”, a autoridade do professor perde qualquer sustentação simbólica — e olha que os professores vêm descendo o sarrafo de suas avaliações há tempos. A indisciplina cresce, o respeito diminui e o trabalho docente se torna emocionalmente insustentável.
Já estou até vendo a cena: “professor, por que tenho de estudar isso, eu vou passar mesmo?”. E a culpa, mais uma vez, será atribuída ao professor que “não sabe dar uma aula atraente”, como se o problema estivesse na performance individual e não na política educacional que desestrutura o próprio sentido da aprendizagem – ou seja, o problema é profundamente mais estrutural.
O impacto dessa decisão recairá diretamente sobre o corpo e a mente do professor regente. O mal-estar docente, já naturalizado, será intensificado. A pressão psicológica aumentará, os conflitos em sala de aula se multiplicarão e o adoecimento será inevitável. Haverá mais afastamentos médicos, mais pedidos de exoneração e mais desistências silenciosas. O apagão de professores, anunciado há anos, se tornará realidade concreta.
Essa política não resolve o problema da aprendizagem; apenas o empurra para baixo do tapete. Em vez de fortalecer a formação docente, garantir salários dignos, melhorar a infraestrutura e oferecer suporte psicológico, o Estado cria um mecanismo paliativo que agrava a sobrecarga e fragiliza ainda mais quem sustenta diariamente a escola pública.
A progressão parcial, como foi apresentada, revela uma concepção que vê o professor como um recurso inesgotável. Como alguém capaz de absorver infinitas demandas, sem adoecer, sem sofrer, sem colapsar. A escola real, porém, já está no limite. E cada nova medida desconectada do cotidiano empurra o professor para mais longe da permanência na carreira.
Em última instância, essa decisão reforça a antiga estratégia política de transformar a escola pública em laboratório de experiências mal planejadas, que produzem manchetes positivas e, simultaneamente, silenciam o sofrimento de quem trabalha todos os dias para impedir que o sistema entre em colapso definitivo.
A escola precisa de estrutura, investimento, respeito e políticas sérias – não de decretos que apenas disfarça a crise.
O que o Estado chama de “progressão”, o professor reconhece como mais um passo rumo ao esgotamento completo. Ah! Governador, e o nosso piso?
* Professor de História, especialista em História Moderna e Contemporânea e mestre em História social, todos pela UFF, doutor em História Econômica pela USP e editor da Dissemelhanças Editora.
https://iclnoticias.com.br/o-professor-em-risco-a-aprovacao-automatica-esta-vindo-ai/