Machismo tornou o homem prisioneiro dele mesmo

 

Jamil Chade 
Colunista do UOL

Na semana passada, escrevi uma carta a todos nós, homens que torcem por seus times de futebol. Mencionando a disparidade de gênero e o fato de que uma igualdade para as mulheres apenas vai ser obtida em 132 anos, questionei a todos sobre nosso papel nesse debate e apontei como a Copa do Mundo que ocorre neste momento deve ser encarada como um ato político.

Como um gesto de desafio ao sistema, em mais um esforço para romper com séculos de uma profunda injustiça e de garantir um lugar de direito às mulheres.

Mas, nas horas e dias que se seguiram à publicação da carta, recebi dezenas de comentários que revelaram a distância que milhões de brasileiras ainda terão de percorrer para ser consideradas como seres humanos, plenas de dignidade, respeito, sonhos presentes e futuros.

Sem repetir as mesmas palavras usadas por indignados machões de plantão, me mandaram para o quinto dos infernos e outros destinos menos nobres. Enquanto isso, um número enorme de mensagens insinuava que "politizar" a Copa era "mimimi".

Um deles chegou a me "acusar" de homossexual. Será que ele achou que isso seria um insulto para mim? Ou ele queria dizer que a defesa dos direitos das mulheres nos torna menos masculinos?

Outro ainda lançou: "praticamente não tem mulheres nesse time".


Com símbolos religiosos em suas redes sociais ou sinais de um patriotismo oco, suas mensagens falavam de "vitimismo", "asneira" e até questionado se as mulheres "mereciam" uma Copa do Mundo. Muitos ainda insistiam em desqualificar a qualidade do evento, confirmando a cegueira que eu comentava no texto.

Esta carta, portanto, vai para esse grupo de homens. Seus ataques não me surpreenderam.

Mas tenho algumas perguntas a vocês: por qual motivo incomoda tanto falar sobre o legítimo espaço da mulher? Por qual motivo falar de direitos das mulheres causa tanto medo e mobiliza uma reação tão enérgica? Por qual motivo temos pesadelos com o direito de cada uma delas ao controle pleno de seus corpos?

As reações que recebi, caros, são as provas cabais de que essa luta ainda está longe de chegar ao seu objetivo.

Se eu, no meu lugar de privilégio, fui questionado apenas por tocar no tema, fico imaginando o caminho de obstáculos, riscos e violência que garotas enfrentam todos os dias. Apenas por existir.

Temos o dever, portanto, de somar nossas vozes às delas. Não estou falando aqui em sequestrar um movimento que é das mulheres e que precisa ser comandado por elas, sempre. Mas a violência e opressão apenas vai ter uma resposta quando nós, homens, entendermos que temos um papel nessa verdadeira revolução.


Entendo a frustração legítima de uma ala das feministas que apontou como o que eu digo já é o discurso delas há décadas, sem que suas vozes tenham a repercussão necessária. Concordo plenamente com elas. Por isso, temos a obrigação de escutar, ler, aprender e entender suas vozes. Mesmo assim, considero que temos o dever de falar. No meu caso, de usar um espaço privilegiado que ocupo apenas por ser um homem branco. Sei que não fiz nada por isso. Sou apenas o produto de uma mais uma geração machista.

E não adianta achar que o problema está nos outros. Vamos ser honestos aqui. A misoginia não é uma exclusividade da extrema direita.

Quantos de nós, supostos progressistas, interrompemos a fala de uma mulher? Quando vamos dizer ao grupo de WhatsApp que um tal comportamento machista não cabe mais? Quando vamos parar de rir de comentários e piadas que humilham as mulheres? Quando vamos parar de chancelar um chefe que faz comentários inadequados a outras colegas nossas? Quando vamos entender que o mero ato de pegar um Uber é um fator de risco para elas? Quando vamos parar de normalizar a violência ou transferir a culpa a elas?

A lista de perguntas é enorme.

Enfim, termino esta carta ciente de que, uma vez mais, serei atacado. Mas, em pleno século 21, é intolerável manter o silêncio e não reconhecer a luta de tantas mulheres que são mortas ou sufocadas em seus sonhos apenas por brigar por seus direitos. Insisto, porém, em convocar à luta.

João Ubaldo Ribeiro, com quem tive o prazer de fazer uma cobertura de uma Copa do Mundo ao seu lado em 2006, certa vez escreveu num de seus romances:


O próprio machismo se voltou contra os machões, tornou o homem prisioneiro dele mesmo, obrigado a não chorar, não broxar, não afrouxar, não pedir penico. Aquilo que, numa primeira visão, oprimia somente as mulheres oprimia mais os homens, que até hoje vivem cercados por um cortejo de mulheres fantasmagóricas, reais e imaginárias, sempre prontas a esquartejá-los, se o pegarem fora desses padrões.

Por isso, repito a mesma pergunta da carta anterior: e nós, de que lado estamos neste jogo?

A liberdade delas é também a nossa.

Saudações democráticas e antimachistas,

Jamil Chade

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL


JAMIL CHADE

Todo sábado, Jamil escreve sobre temas sociais para uma personalidade com base em sua carreira de correspondente. 

https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2023/08/06/carta-aos-homens-de-novo-machismo-tornou-o-homem-prisioneiro-dele-mesmo.htm

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