Os delírios de Bolsonaro


Dos tempos de Exército ao Planalto, Jair Bolsonaro sempre se orgulhou da atitude bélica estampada em público. 

Alinhavado ao poder desde 1989, o presidente parecia se sentir bem entre explosões autoritárias e uma constante incontinência verbal exibida quando contrariado. Nos últimos quatro anos, em especial, dizia que os rompantes o aproximavam do povo, apontava que quem se incomodava praticava “mimimi” e proferia xingamentos e acusações falsas em série contra algozes. Dado o histórico, desde as eleições, a claque que o apoiou espera uma aparição energética dele para capitanear a oposição e fazer frente ao retorno do PT à mesa de decisões. Bolsonaro, porém, está em transe. Na reta final do governo, não sabe como se manter relevante sem um mandato. Lamenta-se pelos cantos. Lança palavras sem fundamento ao vento. Seu comportamento preocupa aliados e familiares quanto à sua saúde mental.

Desde o segundo turno, Bolsonaro pouco trabalhou — soma menos de uma hora de atividades por dia, segundo as agendas oficiais. Nas raras aparições públicas, deu sinais de instabilidade. No final de novembro, em um jantar com a bancada de congressistas eleitos pelo PL, discutiu com Carla Zambelli na frente de correligionários e sequer fez um agradecimento aos presentes. Em 5 de dezembro, chorou em uma cerimônia de fim de ano das Forças Armadas, no Clube Naval de Brasília. Seis dias depois, voltou a cair em lágrimas ao abraçar uma criança durante um encontro com apoiadores na frente do Alvorada, no qual permaneceu em silêncio. Até ensaiou uma recuperação, mas caiu em depressão de vez ao ver caminhões de mudança retirando seus pertences do Alvorada e do Planalto. Viu que era mesmo o fim da linha.

O semblante deprimido é visto, sobretudo, a portas fechadas no Alvorada. Ali, Bolsonaro confunde-se entre os próprios pensamentos e dá sinais trocados aos poucos auxiliares e parlamentares que recebe. A um nome de seu círculo próximo, disse, durante uma conversa na residência oficial, na última semana, que deve abandonar a política. O interlocutor encarou a fala, seguida de críticas ao STF e ao TSE, como um mero “desabafo”. Membros da bancada do PL na Câmara, porém, veem chances reais de o capitão pendurar as chuteiras. “Não imagino Bolsonaro fazendo uma oposição técnica e constante por quatro anos. Ele sempre fez política de adesão, do tipo ‘se quiser, me siga’, e não de entregas. Mas isso só funciona quando você está no poder ou é outsider”, pontua um deputado, sob reserva. Na ala bolsonarista, começa a crescer o entendimento de que o capitão até permanecerá no partido e pode atuar como um “consultor informal”, mas não se arriscará outra vez em 2026.

DE SAÍDA Caminhão recolhe objetos do presidente Jair Bolsonaro no Palácio do Planalto, na sexta-feira, 16 (Crédito:Pedro Ladeira)

A outros aliados, o presidente dispara impropérios, demonstra ainda flertar com o golpismo e crer em uma reviravolta milagrosa que lhe renda a permanência no Planalto, embora não entre em detalhes. Tem trocado mensagens em aplicativos divulgando que tinha vencido as eleições, como se veiculasse as fake news para ele próprio acreditar, o que aumentou a apreensão de seus interlocutores. É como se tivesse construído uma barreira mental para fugir da realidade da perda do poder, fazendo assessores dizerem a boca pequena que pode mesmo ter perdido a sanidade. Pessoas próximas tentam cortar as suas ilusões e se preocupam com algum gesto destemperado. Bolsonaro parece não ter compreendido que não tem qualquer guarida para uma investida antidemocrática. Nos bastidores, Valdemar Costa Neto nega-se a mover uma ação no TSE pedindo novas eleições sob alegação de fraude — até essa nova investida fantasiosa foi imaginada pelo mandatário. Mas o presidente do PL está calejado: ainda busca uma saída para livrar o partido da multa de R$ 22,9 milhões por questionar as urnas com base em uma auditoria fajuta e não quer se expor outra vez. Integrantes da coligação do capitão nas eleições deste ano, Progressistas e Republicanos, pragmáticos, reconheceram publicamente a vitória de Lula.

DESPEDIDA Michelle Bolsonaro se ajoelha durante oração de apoiadores de Bolsonaro no Palácio do Alvorada, na terça-feira, 20: a manifestação teve até “minuto de silêncio” (Crédito:Divulgação)

Choque de realidade

São vários os sinais de desconexão com a realidade. Bolsonaro ficou desconcertado ao saber que o seu líder na Câmara, Ricardo Barros, já negociava com o objetivo de levar o PP para a base de Lula. No seu delírio napoleônico, achou que comandaria um exército formidável da oposição. Mas o choque de realidade já chegou. Sua base de apoio negocia cargos na nova gestão, enquanto aliados que se elegeram usando o seu nome, como o vice Hamilton Mourão ou o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, ganharam uma nova estatura política e abandonam as trincheiras do seu imperador. Depois de sucumbir ao seu Waterloo, Bolsonaro ruma para o autoexílio e teme a prisão — sua grande obsessão, segundo pessoas próximas.

Os devaneios ficaram claros na única manifestação de Bolsonaro à sua horda, marcada por um tom enigmático. No último dia 12, o presidente repetiu que é a população quem decide “para onde vão as Forças Armadas”. “Eu me responsabilizo pelos meus erros, mas peço a vocês: não critiquem sem ter certeza absoluta do que está acontecendo”, disse. Aeronáutica, Exército e Marinha, contudo, não vão a lugar algum. Aliás, até mesmo o movimento de antecipação da troca de comandantes, que poderia criar certa instabilidade com o governo Lula, está descartado. Na última terça-feira, novamente se colocou calado diante de apoiadores no Alvorada. A primeira-dama, Michelle, ajoelhou-se para uma oração e a multidão respeitou um minuto de silêncio.

Bolsonaro parece crer em uma reviravolta milagrosa. Pessoas próximas tentar cortar as ilusões e temem um gesto destemperado

Na prática, Bolsonaro já renunciou. Diante disso, lideranças partidárias e o clã presidencial tomaram a frente das articulações para manter vivo o bolsonarismo. Walter Braga Netto participa das reuniões em que o PL discute a mudança de seu estatuto para posicioná-lo “mais à extrema-direita” a fim de afagar o capitão. Michelle Bolsonaro foi quem prestigiou os parlamentares aliados no Distrito Federal na cerimônia de diplomação conduzida pelo TRE — ela posou para fotos ao lado da ex-ministra Damares Alves, de quem é amiga pessoal, e de Bia Kicis, uma das estrelas da ultradireita na capital. A Valdemar Costa Neto, coube a missão de sair em defesa dos extremistas que viraram alvos de mais de 100 mandados de busca e apreensão e prisão, expedidos por Alexandre de Moraes, em razão da participação e financiamento de atos antidemocráticos. Em um vídeo divulgado nas redes, o presidente do PL afirmou que os manifestantes acampados em protesto ao resultado das eleições são “pessoas de bem” e “gente de respeito”, três dias depois de radicais promoveram arruaças e incendiaram veículos nas ruas de Brasília.

Aliados irritados

A paralisia de Bolsonaro tem irritado profundamente parlamentares que, em um passado recente, fizeram coro aos ataques dele ao STF e ao Congresso e, por consequência, entraram nos inquéritos das fake news e das milícias digitais. A insatisfação tornou-se pública pelas palavras de Otoni de Paula, um dos vice-líderes do governo na Câmara, que criticou: “O silêncio do presidente chega a beirar uma covardia”. E emendou: “Serei chamado de traidor pelos que acham que Bolsonaro vai agir, e eu, olhando na sua câmera, digo: não vai. Não se iludam. Saiam das portas dos quartéis, vocês serão presos e não haverá ninguém que os defenda”.

Alheio aos chamados, Bolsonaro fechou-se até mesmo para antigos habitués do Alvorada. A decepção de Otoni de Paula é compartilhada por Alberto Fraga, deputado federal eleito e amigo de Bolsonaro há 40 anos. Os dois não conversam há cerca de 20 dias. “Ele não dá grandes explicações. Ninguém sabe o que se passa pela sua cabeça. O que os mais próximos imaginam é que tem uma razão para o silêncio. Mas isso nos deixa angustiados. As pessoas que estão na rua fazendo as manifestações esperavam que ele falasse alguma coisa”, comenta. “Entendo que Bolsonaro nunca havia experimentado uma derrota política. Ficou abalado. Essa é a verdade. Mas política é assim. Eleição se perde e se ganha”, pontua. “E há uma frase que diz: o campeão se mostra na derrota.”

Silas Malafaia, que fez campanha ao lado do presidente, falou com ele pela última vez em 1º de novembro. Na ocasião, Bolsonaro ligou e perguntou qual postura o pastor considerava adequada diante do bloqueio de rodovias por seus apoiadores. Malafaia foi sucinto. Aconselhou o capitão a sugerir aos eleitores a desobstrução das vias, para não prejudicar a economia, mas frisou que a manifestação era um direito constitucional, em uma deixa para mantê-los mobilizados. E Bolsonaro assim o fez, em um pronunciamento de 2 minutos, mais de 44 horas após a oficialização do resultado das urnas. Desde então, não retornou mais os telefonemas do aliado. Embora discorde do silêncio do presidente, Malafaia contemporiza. Argumenta que, ressalvado o antagonismo ideológico, o bolsonarismo assemelha-se ao peronismo argentino em termos de força e capilaridade e, portanto, não acabará devido a uma reclusão momentânea. “O presidente não vai perder cacife. A política é dinâmica. Acho que ele deveria se posicionar, mas é um direito ficar quieto, por ora”.

No PL, já há quem defenda que, caso o presidente opte pelo ostracismo, perca a boquinha que lhe foi garantida no partido. Parte da legenda não concorda com a garantia de mansão, escritório e staff para um homem que não colocará o rosto em público e ainda exige o veto à presença de correligionários no governo eleito. A conta, dizem, não fecha. Ou Bolsonaro lambe as feridas e se põe de pé, ou se tomará descartável. O fim do capitão parece cada vez mais melancólico. 

https://istoe.com.br/os-delirios-de-bolsonaro-2/

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