Mourão na TV: Acinte de ambicioso a juntar extremismo e liberais de araque

 Reinaldo Azevedo

Colunista do UOL

31/12/2022 17h39

Hamilton Mourão, presidente em exercício, convocar rede de rádio e televisão para pronunciamento à nação é o último ato indigno de um governo indigno

A coisa já seria um despropósito ainda que os que estão sendo apeados do poder pelo voto fossem uma constelação de santos conduzida pelos anjos. 

Sei lá o que Mourão vai dizer — aposto que bom não será —, mas a decisão é imprópria ainda que se limitasse a ler alguns salmos

Governo que se despede, qualquer um, fala por suas obras, pelo resultado das urnas e, claro!, pela luta política subsequente, dentro das regras do jogo. 

Não tem de se entregar a proselitismo de nenhuma natureza.

Enquanto escrevo, o que se sabe é que Mourão também não passará a faixa a Lula porque, afetando disciplina militar e respeito pela hierarquia e pela formalidade, entende que não poderia usurpar uma competência que é do titular. 

É papo furado

No exercício da Presidência, de que o outro abriu mão, seus poderes são plenos — mormente porque a passagem da faixa não tem valor jurídico; trata-se de um simbolismo e de respeito à institucionalidade e à alternância de poder.

Com que então o senhor Mourão não se considera apto para uma cerimônia simbólica, mas resolveu exercer uma prerrogativa da Presidência e convocar rede de rádio e televisão para um pronunciamento oficial? É mais um ato de provocação barata daqueles que se consideram donos do poder.

CANDIDATO A LÍDER DA EXTREMA-DIREITA
Mourão é senador eleito e é visível que se candidata a ser uma das vozes influentes da extrema-direita. Parece apostar que Bolsonaro não terá condições políticas e intelectuais de manter mobilizados e coesos amplos setores do eleitorado e da opinião pública que não têm lá muito apreço pela democracia -- ou que têm ideias muito próprias do que seja um regime democrático.

É notável, por exemplo, a sem-cerimônia com que essa gente e seus porta-vozes — incluindo criminosos disfarçados de jornalistas — pregam intervenção militar para impedir a posse do eleito. E o fazem afirmando que estão a defender a Constituição e o estado de direito, como se estes fossem compatíveis com golpes e como se uma carta constitucional pudesse abrigar a sua própria dissolução. É o discurso da insanidade e da autovitimização do algoz — marca, diga-se, do fascismo e de grupamentos fascistoides.

O que vai dizer Mourão? 

É possível que engrole uma cascata, digamos, "moderada" em defesa das regras do jogo e da alternância do poder, que exalte os supostos feitos do governo que ainda escorre feito chorume e que, tudo indica, chame de "democráticas" as manifestações golpistas desde que "pacíficas", como se pudesse haver um golpismo não criminoso.

Bolsonaro fugiu, mas Mourão quer lembrar que os ditos "conservadores" não estão sem comando.

O que os unirá daqui para a frente? 

Lula governará por um mês, dois, dez, um ano, dois, três... e chegará ao fim do quarto sem que os comunistas tenham tomado a propriedade das tias e tios do Zap; sem que um esquadrão de gays, lésbicas e trans tenham sequestrado as criancinhas para campos de reorientação sexual; sem que as igrejas de qualquer orientação tenham sido fechadas por demônios ou pela Polícia de Assuntos Religiosos... A que fantasias os reacionários vão recorrer para demonizar o governo?

SUPOSTOS FISCALISTAS COM OS REAÇAS
Vamos ver. Parte da militância ferrenha de oposição ao governo que nem começou já se manifesta de modo virulento: está incrustada na imprensa na forma de fiscalismo burro do século passado, exercitando o ódio à política e aos políticos em intensidade só vista durante o auge da fascistoide Lava-Jato. Esses bacanas que fingem gostar apenas de números não conseguem se conectar com os bolsonaristas porque estes são burros demais para ao menos fingir algum apreço pelas instituições.

Aí esse "fiscalismo" se sente em solidão e ensaia um discurso que nos ameaça com o fim dos tempos e com o caos. Não me esqueci de Mourão, não. Observem que ele pretende estabelecer a conexão do reacionarismo golpista (desde que sem violência) com os supostos defensores da responsabilidade fiscal. O general foi um dos primeiros a atacar a PEC da Responsabilidade Orçamentária. Ele só não reclamou quando Bolsonaro recorreu a duas PECs inconstitucionais na boca da urna para tentar ganhar a eleição.

Ao marcar o encerramento dessa pantomima grotesca, a que chamam "governo", com um pronunciamento, Mourão se candidata a ser um nome disposto a juntar os "reaças do Artigo 142" à turma que, ao atacar a PEC da Responsabilidade Orçamentária, jura estar preocupada com os pobres... Aqueles mesmos que foram empurrados para a fome no governo Bolsonaro — porque, entre outras coisas, os valentes acabaram com estoque reguladores de alimentos —, enquanto os sedizentes vigilantes das contas públicas tinham frêmitos de glória com o superávit primário picareta de Bolsonaro-Guedes.

O pronunciamento, reitero, seria uma indignidade ainda que Mourão fosse nos contar que batatinha, quando nasce, espalha rama pelo chão... Mas ele quer mais do que isso: mesmo que venha a exaltar Bolsonaro, o que provavelmente fará, estará a dizer: 

"Ele fugiu, mas eu estou aqui, junto com vocês, que ainda estão à solta, a pedir golpe, e junto com os meus amiguinhos da imprensa que decidiram decretar o fim do governo antes mesmo de ele começar. Eu posso unir esses dois mundos..." E talvez possa mesmo. Querem ver?

DECRETO INDECENTE
Leio no Estadão:
"No último dia do mandato do presidente Jair Bolsonaro, o governo editou um decreto que reduz a tributação das maiores empresas do País e retira R$ 5,8 bilhões por ano de receitas do próximo governo Lula. A desoneração tributária pegou de surpresa a nova equipe econômica e acontece no momento em que o futuro ministro da Fazenda, Fernando Haddad, busca aumento de receita para diminuir o rombo de R$ 220 bilhões previsto no Orçamento de 2023. O decreto reduz em 50% a contribuição ao PIS/Cofins sobre as receitas financeiras das empresas que adotam a tributação do lucro real, justamente as maiores do País.
As receitas financeiras são aquelas obtidas, por exemplo, com rendimentos de aplicações feitas no mercado financeiro, como títulos de renda fixa, juros cobrados dos fornecedores por atraso, atualização de créditos tributários e descontos financeiros obtidos pela empresa. O decreto foi assinado pelo presidente em exercício. Hamilton Mourão, em edição extra do Diário Oficial da União deste sábado, 30, após Bolsonaro embarcar para os Estados Unidos. É praxe, durante os períodos de transição, o governo que sai consultar o que chega sobre medidas com impacto fiscal dessa magnitude.
"É curioso saber por que se esperou o último dia do ano para tomar essa decisão e se por acaso isso foi combinado com o governo a ser empossado", disse o economista José Roberto Afonso, professor do Instituto de Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) e pesquisador da Universidade de Lisboa. Para Afonso, a medida pode ser constitucional e legal, mas é "amoral". "Mais curioso ainda será saber se essa medida, que reduz arrecadação e piora o déficit, mas beneficia as maiores empresas do País e aumenta os seus ganhos financeiros em termos líquidos, em caráter permanente, será tão criticada quanto as outras medidas que aumentaram o auxílio emergencial para os mais pobres".

RETOMO
Ora, Afonso certamente perderá por esperar. A gritaria não virá. Os supostos liberais de plantão dirão que mais recursos nas mãos das empresas sempre resultarão em mais benefícios para os pobres porque, assim, haverá mais investimentos e mais empregos... Quem não sabe o que fazer com mais dinheiro é justamente o pobre.

Eis o cara que vai fazer um pronunciamento daqui a pouco. É um líder talhado para o liberalismo à brasileira, que sempre foi chegado a um quartel, não é mesmo?

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL 

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