Feliz Democracia Nova

-  Colunista do UOL

   31/12/2022 16h54

Jamil Chade -  

O cheiro de queimado e de destruição ficou impregnado em nossa pele. 

Nenhum banho demorado parecia limpar essa angústia.

 Ficamos sem ar e nada parecia ter fim. 

Nem a dor, nem o desmonte e nem a longa noite escura.

As mentiras e as ameaças passaram a ser instrumentos políticos, enquanto a posse de armas foi legitimada.

 Nos calabouços do Diário Oficial, a democracia, o estado de direito e a república eram corroídos a cada nova publicação cifrada em portarias e decretos.

Quem sobreviveu aos quatro anos de barbárie chega em 2023 transformado depois do pior governo de nossa história democrática. 

Até o último momento, seja na distribuição de vacinas, na contagem de votos ou na preparação da posse, o suspense parecia ter sido instalado. 

"Será que conseguiremos?", era a frase que ecoava nos corações de muitos, em silêncio e repleta de medo.

Em 2023, o Brasil mudará e os problemas acabarão?

Não, longe disso. 

Não tenhamos ilusões

Será um ano difícil, repleto de desafios. 

Nada está garantido.

Mas o começo é o ato mais importante, Platão já dizia.

 Nesta noite em todo o Brasil, a festa não tem relação com a rotação da terra - sim, ela é redonda - e nem com quantas vezes o errante navegante faz o percurso ao redor do sol.

Como escreveria Ferreira Gullar, o ano novo não começa nem no céu e nem no chão do planeta: começa no coração. Começa como a esperança de uma vida melhor.

A festa, portanto, é a de poder voltar a respirar e de fazer planos onde o amor tenha cadeira cativa.

Para muitos, na ânsia de começar algo novo, parte da festa já teve início com a decolagem de um covarde para a terra no pateta

Não é por acaso que a impaciência esteja se transformando em abraços, samba e festa. 

O maior legado do bolsonarismo não foi a destruição do estado. 

Mas normalizar a desconfiança, o ódio e a violência.

Por décadas, nos EUA, o Ano Novo era o dia mais triste e dramático do calendário para milhões de pessoas. 

Era a partir de janeiro que donos de escravos faziam seus novos contratos, emprestavam e vendiam seres humanos. 

Na escuridão de galpões de fazendas, famílias passavam a última noite abraçados e rezando para que, naqueles novos contratos que iriam entrar em vigor dia 1 de janeiro, mães e filhos não fossem separados para sempre, que histórias de amor não chegassem ao fim.

Hoje, temos a chance de viver talvez um sentimento contrário: a do reencontro. 

Se há algo na esperança que é mais forte que a dor é a ideia de que o melhor das nossas vidas ainda não aconteceu.

Não temos o direito de apenas olhar para o futuro.

 Nossa maior homenagem aos 700 mil irmãos, pais e mães que nos deixaram não será a construção de um monumento. 

Mas erguer uma sociedade justa. 

Construir uma nova democracia, capaz de garantir dignidade e o direito de transformar sonhos em vida.

Não podemos e não iremos aceitar que o novo governo apenas restabeleça o que existia antes de 2019.

 Precisamos de um novo pacto social, audacioso, corajoso e transformador.

Mas pelo menos nesta noite, o momento é a de permitir que a alma volte a cantar, que a lágrima seja de felicidade, que o sorriso sincero das crianças seja retribuído com nossos abraços traduzindo a palavra "conseguimos".

E, ao som da meia-noite, gritar... 

..Feliz Democracia Nova! ** 

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2022/12/31/feliz-democracia-nova.htm

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