Fala de Lula sobre TPI, que tomou uma decisão polêmica, é contraproducente


Reinaldo Azevedo
Colunista do UOL
Lula em entrevista coletiva na Índia, por ocasião do encontro do G20: considerações sobre o TPI são apressadas, ainda que decisão do tribunal sobre prisão de Putin seja polêmica
Lula em entrevista coletiva na Índia, por ocasião do encontro do G20: considerações sobre o TPI são apressadas, ainda que decisão do tribunal sobre prisão de Putin seja polêmica Imagem: Ricardo Stuckert/PR

A questão é sempre saber que causa vale um sacrifício, um jejum, uma peregrinação, um desgaste, um tostão furado que seja. A sabedoria popular diz que não se acende vela para mau defunto. Vladimir Putin, como se sabe, está vivo. Muitos de seus adversários não têm essa sorte. Boa parte desenvolveu uma estranha compulsão por se atirar de edifícios. Mas é um defunto da moral da história. A menos que o mundo dê um cavalo de pau que não está no script. Nesta segunda, Lula ajustou a sua fala sobre a competência para prender o líder russo, contra quem há um mandado de prisão expedido pelo Tribunal Penal Internacional (TPI), caso este desembarcasse no Brasil para a reunião do G20 no ano que vem. Seria, claro!, do Judiciário. Corrigiu, portanto, fala anterior, em que descartou a prisão.

Ocorre que o presidente brasileiro falou um pouco mais:
"Eu, inclusive, quero estudar muito essa questão deste Tribunal Penal porque os Estados Unidos não são signatários dele; a Rússia não é signatária dele; então eu quero saber por que o Brasil virou signatário de um tribunal que os Estados Unidos não aceitam. Por que nós somos inferiores e temos aceitar uma coisa... Agora quem toma a decisão é a Justiça. O Brasil tem um Poder Judiciário que funciona. E funciona perfeitamente bem. Nós temos que ver se vai acontecer alguma coisa num momento em que tiver de acontecer. Mas, de qualquer forma, é a Justiça que dá uma decisão. Se o Putin decidir ir ao Brasil, quem toma a decisão se vai prendê-lo ou não é a Justiça. Não é nem o governo nem o Congresso Nacional. Eu espero que tenha acabado a guerra e que o tribunal tenha refeito a sua posição para que a gente possa voltar à normalidade."

Em 2024, o conflito não terá acabado. Ainda que acontecesse, o tribunal não "mudaria a sua posição" sem um julgamento. O que fico cá a me perguntar é o que ganha o Brasil com essa declaração e que benefício político obtém o próprio Lula. Na mesma entrevista, ele fez considerações sobre o acordo Mercosul-União Europeia. E sua fala foi impecável. Não se pode negociar sob a ameaça de sanções. Fazê-lo, em tais condições, seria, sim, uma demonstração inaceitável de subalternidade. Mas é o caso do TPI?

Ninguém forçou o Brasil a aderir a coisa nenhuma. Formalizou soberanamente sua posição em 2002, em processo iniciado em 2020. Lula governou entre 2003 e 2010. Segundo as regras internacionais, quando um Estado-membro de um tratado não quer mais se submeter a seus termos, pode "denunciá-lo" (é a expressão diplomática) e se retirar unilateralmente do concerto.

PANO PARA MANGA
A ordem de prisão, de 17 de março de 2023, é, para dizer pouco, polêmica. E isso não diz uma única vírgula em favor do líder russo. Ocorre que nem Rússia (caiu fora em 2016) nem Ucrânia são signatárias do Estatuto de Roma. A denúncia foi encaminhada por 43 países-membros. Estranho? Claro que sim! A ser assim, o tribunal se atribui a competência de polícia do mundo, pouco importando se agressor ou agredido aderiam a seus termos. A propósito: se uma turma se junta para pedir a prisão do príncipe Mohammed bin Salman Al Saud, governante de fato da Arábia Saudita, em razão do massacre de crianças no Iêmen, poderia obter uma decisão favorável? Nem um país nem outro aderiram ao estatuto.

De fato, EUA não toparam. Temem pelo destino de seus soldados-interventores mundo afora. Também a Índia se negou. Nunca se sabe em que podem dar seus conflitos com o Paquistão. A China não costuma se submeter a tribunais dotados de extraterritorialidade. Israel está fora porque aquele ente considera crime a colonização de territórios ocupados. Há, entre os 123 membros, democracias exemplares e notórias ditaduras. Destaque-se: o TPI julga pessoas, não países, por crimes de guerra, genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de agressão.


Em 21 anos, analisou 30 casos. Condenou e absolveu protagonistas de ações sangrentas que estão na periferia dos conflitos que realmente contam para o destino do mundo. É claro que a decretação da prisão, com a celeridade com que se deu — todas as outas decisões, sobre líderes muitíssimo menos relevantes, levaram bem mais tempo —, é parte também da propaganda contra a Rússia, liderada pelos EUA, que não reconhece, vejam a ironia, a autoridade do tribunal. Isso faz do autocrata um cara batuta? De jeito nenhum! Mas nos diz como são as coisas.

CONTRAPRODUCENTE
Lula, parece, não acredita que possa haver uma solução para a matança entre a Rússia e a Ucrânia se os pressupostos forem a devolução da Criméia e das áreas ocupadas pelo invasor à Leste do país invadido. Também não acredito. Não se trata de um juízo moral. É apenas uma questão de fato. "E se Putin for derrubado?" Talvez as coisas se tornassem muito mais perigosas.

Independentemente dos erros cometidos pela Otan, sob o comando dos EUA, a invasão é criminosa e ilegal, a exemplo de outras que estão em curso mundo afora, e violam o direito internacional. Acontece que essa é um conflito influente, que desorganiza a economia mundial, e se transformou num palco do confronto de grandes potências ou econômicas ou nucleares.

Nesse contexto, pensemos um pouco, que importância tem o fato de o Brasil ser signatário do Estatuto de Roma? Resposta: nenhuma! Quando Lula diz que fica parecendo que "somos inferiores", uma vez os EUA não o reconhecem, tem-se um juízo depreciativo sobre o dito-cujo. Com efeito, o TPI não puniu nem punirá todos os criminosos da Terra, mas que, até agora, só meteu facinorosos em cana.

Lula não está obrigado a professar sobre a guerra as mesmas convicções de Joe Biden e de líderes europeus. Até porque elas têm se traduzido em ações muito pouco eficazes. Na verdade, deixam o mundo menos seguro a cada dia. Mas é preciso tomar cuidado para que a renitência do erro daquele que estão dando as cartas no conflito não induza a respostas equivocadas no que respeita aos direitos humanos, ainda que o TPI tenha tomado uma decisão apressada e escancaradamente política. Não é que o cara não mereça a cana. É que um órgão dessa natureza não pode ser desmoralizado por um senso seletivo de Justiça.

Ou por outra: Putin é uma figura nefasta demais para macular a independência do tribunal e para tisnar o compromisso de Lula com os direitos humanos. Não creio que vá acontecer ou que o presidente volte ao assunto, mas tentar rever a adesão do Brasil ao Estatuto de Roma seria um erro gigantesco.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.


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