De olho em Conselho da ONU, Lula busca protagonismo na América do Sul
Colunista do UOL
30/05/2023 04h00
Jamil Chade -
A decisão do governo de Luiz Inácio Lula da Silva de convocar todos os presidentes da América do Sul para um encontro em Brasília não tem relação apenas com uma nova fase da integração regional e o relançamento da construção de alianças. Para o Brasil, liderar a América do Sul é o único caminho para garantir que possa ser considerado um candidato legítimo para ocupar um lugar permanente no Conselho de Segurança da ONU.
Lula considera que a reforma do sistema internacional é urgente e que o impasse na ampliação do Conselho aprofunda a crise de confiança no mundo.
Não há qualquer acordo entre as potências sobre uma possível reforma do órgão máximo de segurança da ONU. Mas, entre diplomatas, a guerra na Ucrânia pode reabrir um debate mais amplo sobre a redefinição das instituições internacionais e uma transformação na relação de poder no mundo.
Caso isso ocorra, governos se apressam para se posicionar para ocupar posições de força, inclusive na ONU.
O Brasil, que desde os anos 90 pleiteia uma vaga, quer relançar o apelo por uma transformação no órgão da ONU. Mas, para se credenciar como o candidato da América do Sul, precisa demonstrar ao mundo que, de fato, é o principal protagonista na região.
A candidatura do Brasil nem sempre foi unanimidade na região. Durante os anos de Carlos Menem, na Argentina, Buenos Aires deixava claro que uma eventual vaga não seria automaticamente do Brasil.
Nos últimos quatro anos, o protagonismo brasileiro na região desapareceu e, com ela, a posição de representante natural do continente. Em diferentes eventos internacionais, quem representou a América do Sul foi o Chile, Colômbia ou Argentina.
Parte do esforço do Itamaraty em transformar Brasília na capital regional, por algumas horas, é justamente para retomar esse papel de liderança, questionada desde 2019. Nos documentos que embasaram a política externa de Lula e preparados ainda no final de 2022, diplomatas e assessores chegaram à constatação de que Jair Bolsonaro foi um fator de instabilidade regional e que, ao dar as costas para o continente, acabou criando para ele mesmo um isolamento ainda maior.
Bolsonaro deixou de exercer a diplomacia presidencial por motivos ideológicos e isolou o Brasil politicamente de seu entorno regional", afirmou o documento.
O diagnóstico ainda apontou como Bolsonaro abandonou as viagens para os vizinhos,.
"Rompendo com a tradição de bom diálogo com todos os vizinhos, não visitou a Argentina de Alberto Fernández, a Bolívia de Luis Arce, o Chile de Gabriel Boric, a Colômbia de Gustavo Petro e o Equador do ex-presidente Lenín Moreno", disse. "Tampouco realizou visita bilateral à América Central e o Caribe ou ao México", insistiu.
Bolsonaro ainda fechou cinco embaixadas no Caribe. "Como exemplo da perda de relevância do Brasil naquela região, a Jamaica fechou sua embaixada em Brasília", completou.
Bolsonaro: fator de desestabilização regional
O diagnóstico ainda acusou Bolsonaro de ter contribuído para desestabilizar a região. "As relações com a Venezuela foram, na prática, rompidas. O Brasil reconheceu a autoproclamada presidência de Juan Guaidó (2019) e fechou a embaixada em Caracas e demais postos consulares na Venezuela (2020)", disse.
"A atuação no contexto do afastamento do ex-presidente boliviano Evo Morales em novembro de 2019 não condiz com a tradição diplomática brasileira e requer esclarecimentos", apontou.
No restante da América Latina, o documento ainda alertou que o Brasil "dificultou diálogo com Cuba e alterou sua posição histórica em votações nas Nações Unidas". "Houve default cubano no pagamento da dívida com o Brasil", disse.
Desmonte dos projetos de integração
O desmonte dos projetos de integração também foi destacado no informe. "Com objetivo de minar processo de integração regional, o governo Bolsonaro denunciou o Tratado Constitutivo da UNASUL. Engajou-se, ademais, em iniciativas fragmentadoras da institucionalidade regional (Grupo de Lima e Prosul) e suspendeu sua participação na CELAC", apontou o documento preparado pela equipe de transição.
"A Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), sediada no Brasil, não realiza reuniões de suas instâncias políticas desde 2018, em razão de impasse sobre a participação da Venezuela", destacou.
"Viés ultraliberalizante do Ministério da Economia de Bolsonaro colocou em risco o Mercosul como projeto estratégico da ação externa brasileira. O Brasil é o único país cujo parlamento ainda não aprovou o Protocolo de Adesão da Bolívia ao bloco", completou.
Guinada latino-americana
Nos documentos do diagnóstico do Itamaraty, o que se propõe é uma verdadeira guinada sul-americana e latino-americana para a política externa nacional.
A meta é "retomar o diálogo com todos os países da região, independentemente da orientação ideológica de seus governos", assim como realizar visitas de alto nível aos países do Mercosul, ao Chile e à Bolívia.
Eis algumas das medidas que foram sugeridas e que já estão sendo tomadas:
Venezuela
- Revogar a Portaria no 7, de 19/8/19, que proibiu o ingresso em território nacional de altos funcionários venezuelanos.
- Iniciar o processo de reabertura da embaixada em Caracas e dos postos consulares na Venezuela. Desenvolver agenda bilateral propositiva.? Retomar o relacionamento com a Venezuela. Trata-se de passo essencial para o processo de integração sul-americana, o qual deve incluir todos os países da região.
Colômbia
Aceitar o convite da Colômbia para participar da mesa de negociação com o ELN e engajar-se ativamente no apoio internacional à política de "paz total" naquele país.
Uruguai
Realinhar a relação com o Uruguai a partir de visão estratégica da importância do vizinho para o Brasil e para o processo de integração regional.
Bolívia
Proceder a nova análise sobre a participação brasileira nos eventos que resultaram na queda do ex-presidente boliviano Evo Morales.
Mercosul
Fortalecer o MERCOSUL e revalorizar seu caráter estratégico para a inserção externa brasileira, favorecendo a recuperação do intercâmbio comercial intrabloco e inserção externa qualificada e dinâmica. Quitar dívidas orçamentárias com o bloco; internalizar a norma que permitirá as contribuições ao FOCEM II; e dar novo impulso à adesão da Bolívia ao MERCOSUL, pendente de aprovação apenas pelo Congresso brasileiro.
Cuba
Elevar novamente as relações com Cuba ao nível de embaixadores acreditados. Restabelecer as relações diplomáticas, atualmente no nível de encarregado de negócios, e sinalizar a retomada da posição histórica brasileira contra o embargo norte- americano.
Haiti
Adotar medidas emergenciais em atenção ao funcionamento da embaixada do Brasil no Haiti, agravado pela deterioração das condições de segurança, e definir política de vistos humanitários para haitianos. Definir política para o Haiti, coordenada internamente e amparada na adequada alocação de recursos financeiros e humanos.
México
Retomar contatos de alto nível com o México, convocando a Comissão Binacional Brasil México (nível de chanceler); e com a América Central, por meio do engajamento com o Sistema de Integração Centro-Americana (SICA).
Caribe
- Desenvolver política para o Caribe, em substituição a movimentos pontuais e irregulares, que inclua o planejamento de visitas periódicas e a formalização de mecanismo de diálogo político com a CARICOM. Adotar medidas de atração de quadros profissionais, inclusive para postos situados em capitais-sede de organismos regionais e multilaterais.
- Anunciar a reabertura das embaixadas em São Cristóvão e Névis, São Vicente e Granadinas, Dominica, Granada e Antígua e Barbuda.
Integração regional
- Reincorporar-se à CELAC e participar da Cúpula de janeiro de 2023, como marco simbólico do retorno do Brasil ao agrupamento e da diplomacia presidencial brasileira para a região.
- Tomar as medidas necessárias ao regresso à UNASUL e dialogar no mesmo sentido com países que formalizaram saída do mecanismo (Argentina, Chile, Colômbia, Equador, Paraguai e Uruguai).
- Formalizar a saída do PROSUL, mecanismo de integração criado paralelamente ao desmonte da UNASUL, ao qual o Brasil aderiu em março de 2019.
- Reativar a agenda regional de saúde e vigilância sanitária e o Instituto Sul-Americano de Governo em Saúde (ISAGS), sediado na Fiocruz.
- Estabelecer diálogo com o Banco Central no sentido de rever a saída do Brasil do Convênio de Créditos Recíprocos (CCR) da ALADI e anunciar o engajamento do país na modernização e atualização dos instrumentos de fomento ao comércio intrarregional.
- Retornar ao Sistema Econômico Latinoamericano (SELA) e quitar pagamentos atrasados.
- Convocar reuniões das instâncias políticas da OTCA e proceder à renovação da Diretoria da Organização.
- Avaliar a reativação das Cúpulas América do Sul-África (ASA) e América do Sul-Países Árabes (ASPA) e sobre a possibilidade de Cúpulas Brasil-África e Brasil-Países Árabes.