Marco temporal e MP expõem desarticulação; é hora de Lula cultivar o jardim

 Colunista do UOL 31/05/2023 07h10 

Reinaldo Azevedo - 

A Câmara dos Deputados aprovou nesta terça à noite o projeto de lei que estabelece a Constituição de 1988 como o marco temporal para a demarcação de terras indígenas: 283 votos a 155. Vamos ao ponto: há um custo evidente, sabido desde sempre — e já tratei do assunto aqui —, de se ter um governante de centro-esquerda e um Congresso majoritariamente de direita, com uma parcela de extrema-direita. Mas não é só.

O governo, obviamente, é contrário à medida. Ademais, é escandalosamente inconstitucional. A questão, diga-se, está em votação no STF. Edson Fachin já disse que a tese afronta a Carta. Nunes Marques, que não. Dispõe o Artigo 231:
"Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
§ 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.
§ 3º O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.
§ 4º As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis."

Fachin está certo, e o outro, errado. O estabelecimento de uma data de ocupação para o reconhecimento viola claramente o espírito e o texto da Lei Maior. E daí? O surto reacionário está em curso. Obviamente se pode dizer tudo, menos que as coisas caminhem bem.

O PL, de Jair Bolsonaro, deu 82 de seus 99 votos para o texto. Houve até um contrário, e 16 ou se abstiveram ou não votaram. Ocorre que houve 99 "sins" de partidos com assento na Esplanada:
- União Brasil: 48 de 59
- PSD: 25 de 43;
- MDB: 22 de 43;
- PSB: 3 de 15;
- PDT: 1 de 18.

Nessas legendas, há ainda 34 parlamentares que se ausentaram ou que se abstiveram. Votassem todos com o governo que integram, e a proposta teria sido rejeitada por 288 a 283.

MP DOS MINISTÉRIOS
Dada aquela disjuntiva inicial, não sei se existe fórmula alternativa para a articulação política. Uma coisa é certa: a que está em curso não funciona. O Congresso tem até amanhã à noite para aprovar a Medida Provisória da reestruturação dos Ministérios. Sem isso, a conformação da Esplanada volta a ser aquela de Jair Bolsonaro.

O governo já jogou a toalha, por exemplo, no caso do Ministério do Meio Ambiente e dos Povos Indígenas, que perdem competências no texto do relator, Isnaldo Bulhões (MDB-AL). Mas isso ainda parecia insuficiente ontem à noite. O governo desistiu de levar a MP à votação porque havia o risco real de derrota. Apesar das concessões absurdas. Fala-se de uma "pressão" para mudar a relação do governo com o Congresso. Em jogo, estão a distribuição de cargos no segundo e terceiro escalões e a liberação mais célere de emendas.

No meio da barafunda, veio à luz mais um bate-boca entre Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara, e o senador Renan Calheiros (MDB-AL). Passou a circular fortemente nos bastidores a conversa de que Lira teria posto a faca no pescoço do governo para demitir o ministro Renan Filho, dos Transportes.

Lira ficou furioso e foi para as redes sociais. Escreveu:
"É falsa e descabida a informação que pedi "a cabeça de ministro", e muito menos em troca de aprovação de qualquer proposta do Governo. Tenho agido sempre com respeito aos Poderes. A origem da desinformação segue na mesma linha daquele que tem usado as redes sociais, e seus prepostos, para me desrespeitar gratuitamente. Isso não admito e exijo respeito! Tenho uma trajetória política de mais de 20 anos dedicados a Alagoas e ao Brasil, sempre em defesa da liberdade e da democracia".

A questão é saber a quem esse "não admito" é dirigido.

Se o Senado não barrar a maluquice do marco temporal, a conta sobrará para o Supremo. Se fizer valer a Constituição, tem-se uma nova onda de ataques ao tribunal, que já é alvo permanente da extrema-direita. Vale dizer: o curto-circuito Legislativo-Executivo pode parar, de novo, no STF.

Havendo risco de a MP dos Ministérios ser rejeitada mesmo com a agressão ao Ministério do Meio Ambiente e ao dos Povos Indígenas, é claro que não há chance de ambos recuperarem as suas respectivas competências. A mesma Câmara, lembre-se, resgatou alterações que havia feito numa MP enviada ainda por Bolsonaro e, na prática, liberou a Mata Atlântica para as motosserras. A decisão também é inconstitucional.

Funcionando, admita-se, o arranjo não está. E o custo é muito alto. Convém que Lula entre para valer na história. Se for preciso dividir mais para governar, considere-se a hipótese. A alternativa parece pior. Convém o presidente prestar mais atenção ao jardim, cultivando-o, como recomenda Cândido, de Voltaire.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL 

https://noticias.uol.com.br/colunas/reinaldo-azevedo/2023/05/31/marco-temporal-e-mp-expoem-desarticulacao-e-hora-de-lula-cuidar-do-jardim.htm

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