Democracia e relativismo: o alerta extremamente atual de João Paulo II

Por

Felipe Koller

 


Há 27 anos, São João Paulo II publicou um dos seus textos mais importantes no âmbito da doutrina social da Igreja, a encíclica Centesimus annus.

 Nela, o papa polonês afirmou que “a Igreja encara com simpatia o sistema da democracia” (n. 46).

 João Paulo II fez, porém, um alerta que seria retomado várias vezes por ele mesmo e por seu sucessor, Bento XVI: a delicada relação entre democracia e verdade, diante do relativismo.

“Hoje tende-se a afirmar que o agnosticismo e o relativismo cético constituem a filosofia e o comportamento fundamental mais idôneos às formas políticas democráticas, e que todos aqueles que estão convencidos de conhecer a verdade e firmemente aderem a ela não são dignos de confiança do ponto de vista democrático, porque não aceitam que a verdade seja determinada pela maioria ou seja variável segundo os diversos equilíbrios políticos”, escreveu o papa.

Foi aqui que João Paulo II deu o alerta: 

“A este propósito, é necessário notar que, se não existe nenhuma verdade última que guie e oriente a ação política, então as ideias e as convicções podem ser facilmente instrumentalizadas para fins de poder. Uma democracia sem valores converte-se facilmente num totalitarismo aberto ou dissimulado, como a história demonstra”. 

O papa voltaria à questão em duas outras encíclicas (se quiser ver mais citações, vá até o fim do texto)*, reiterando ser necessário à própria democracia o reconhecimento de determinados valores que não podem estar sujeitos ao voto da maioria – valores não negociáveis. Em uma primeira leitura, quem imediatamente associa João Paulo II e Bento XVI ao conservadorismo não veria nesse alerta nada mais do que uma tática para defender a manutenção da legislação sobre o aborto e a família “tradicional”, por exemplo. Mas a questão levantada é bem mais abrangente e refinada do que isso.

Pondo a questão

João Paulo II e Bento XVI tiveram a experiência de viver sob o totalitarismo, quer o de matriz nazista – caso de ambos –, quer o comunista – para o papa polonês. Nessa condição, sabiam muito bem que a vontade da maioria não pode ser o referencial absoluto em uma democracia. Eles não esqueceram que muitos regimes totalitaristas e antidemocráticos tiveram a sua origem em movimentos com amplo apoio popular – e com esse apoio espezinharam repetidamente a dignidade humana.

A questão que fica, então, é: qual seria esse referencial inegociável? É possível defender o consenso em torno de algum valor absoluto? Esse foi basicamente o sentido da pergunta que um jornalista fez a Bento XVI em 2008, no voo que o levou em sua visita aos Estados Unidos:

 “Vossa Santidade pensa que uma instituição multilateral como a ONU pode salvaguardar os princípios considerados ‘não negociáveis’ da Igreja católica, ou seja, os princípios fundados sobre a lei natural?”

Unidos: “Vossa Santidade pensa que uma instituição multilateral como a ONU pode salvaguardar os princípios considerados ‘não negociáveis’ da Igreja católica, ou seja, os princípios fundados sobre a lei natural?”


Bento não hesitou em responder que considera que “é precisamente esta a finalidade fundamental da ONU: que salvaguardem os valores comuns da humanidade, sobre os quais se assenta a convivência pacífica das nações”.

 Para ele, “o fundamento da ONU” é exatamente “a ideia dos direitos humanos, dos direitos que expressam valores não negociáveis, que precedem todas as instituições e são o fundamento de todas elas”.

Direitos humanos e lei natural

Esse paralelo que Bento XVI traçou entre o antigo conceito de “lei natural” e o conceito mais moderno de “direitos humanos” não era novo no magistério dos papas. Em 1998, São João Paulo II já tinha dito que “a temática dos direitos humanos encarna as antigas instâncias da doutrina do direito natural”.

Bento voltou ao tema em 2009, dizendo que “os direitos humanos se tornaram o ponto de referência de um ethos universal compartilhado pelo menos a nível de aspiração pela maior parte da humanidade”.

 Na Centesimus annus, João Paulo II já tinha explicitado essa relação triangular entre a democracia, a necessidade do reconhecimento de valores inegociáveis e o consenso em torno dos direitos humanos.

“Após a queda do totalitarismo comunista e de muitos outros regimes totalitários e de ‘segurança nacional’, assistimos hoje à prevalência, não sem contrastes, do ideal democrático, em conjunto com uma viva atenção e preocupação pelos direitos humanos. 

Mas exatamente por isso é necessário que os povos que estão reformando os seus regimes deem à democracia um autêntico e sólido fundamento mediante o reconhecimento explícito dos referidos direitos” (n. 47), escreveu o papa polonês. 

Verdade e dignidade humana 

Diante da questão do lugar da verdade no debate público, muitas vezes parece que somos obrigados a optar dentro de um cenário binário (como acontece com várias outras questões): ou relativismo ou fundamentalismo.

 Parece não haver uma terceira opção

Uns aderem a uma “lista” de verdades e acreditam que o seu dever é impô-las sobre os outros, enquanto outros afirmam não existir um ponto de referência absoluto sobre o que é bom – deixando essa decisão para a vontade da maioria.  

Temos visto, porém, que a vontade da maioria não pode ser o critério absoluto do modo como uma sociedade é dirigida. Quem diz que “as minorias têm que se curvar às maiorias”, do contrário que “se adequem ou simplesmente desapareçam”, se mostra disposto a atacar a dignidade humana daqueles que pertencem às minorias. Uma democracia sem um ponto de referência ético inegociável não é capaz de defender a vida das minorias – ou melhor, não será capaz de defender a vida de ninguém a não ser a sua – e certamente fará do tema da “defesa da vidaapenas um clichê eleitoreiro.

Ao mesmo tempo, como apontaram João Paulo II e Bento XVI, não é preciso ser fundamentalista ou proselitista para defender o espaço da verdade no debate público – aliás, pelo contrário. 

Para o fundamentalista, aquilo que ele chama de verdade é uma ideologia pronta para ser brandida com o fim de atacar os outros, repleta de pontos cegos determinados por seus interesses de poder.

 Para um cristão, o Logos – a razão, a verdade, o sentido – é o Amor. 

O cristão sabe que não pode haver contradição entre a verdade intuída pela experiência humana e a verdade revelada por sua fé

Sabe também que a verdade só pode se desvelar na relação, na comunhão.

 Consequentemente, se uma verdade espezinha a dignidade humana, não pode ser verdade.

Esse é o caminho que percorrem também aqueles que não creem, quando mesmo sem um fundamento transcendente explícito reconhecem a inviolabilidade da dignidade humana.

 Veem a verdade dessa dignidade porque amam. 

Foi essa a experiência que, depois do rastro de destruição da II Guerra Mundial, deu origem à Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948. 

Através de um olhar que reconhece o valor do outro, crentes e não-crentes possibilitam uma sociedade que, sendo verdadeiramente democrática, assume como verdade a dignidade humana de cada pessoa, reconhece os direitos subjacentes a essa dignidade e luta pela defesa da vida de todos.


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Por

Felipe Koller

05/10/2018 

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