Estado de São Paulo tem maior alta de letalidade policial em uma década - Duas pessoas, em média, foram mortas por dia pela polícia de Tarcísio de Freitas em 2024

 

Estado de São Paulo tem maior alta de letalidade policial em uma década

Duas pessoas, em média, foram mortas por dia pela polícia de Tarcísio de Freitas em 2024


Por Catarina Duarte — Ponte Jornalismo

Em 2024, São Paulo teve a maior alta anual de letalidade policial em uma década. Foram 814 mortes, número 61,5% maior do que em 2023. A polícia de São Paulo, liderada pelo governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) e seu secretário da Segurança Pública, Guilherme Derrite, matou, em média, duas pessoas por dia.

Ao todo, nos dois anos sob a gestão da dupla bolsonarista, 1.318 pessoas foram mortas pelo braço armado do Estado. Os dados são da Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo (SSP-SP), divulgados na sexta-feira (31/1) e analisados pela Ponte.

Em 2023, São Paulo teve uma alta de mortes de 19%, revertendo uma tendência de queda que havia sido iniciada em 2018. O novo aumento registrado sob Tarcísio e Derrite atingiu um patamar, ainda assim, que não era verificado desde 2014 — quando o crescimento foi de 62%

Entre as vítimas da violência policial em 2024 está o estudante de Medicina Marco Aurélio Cardenas Acosta, morto aos 22 anos. Ele levou um tiro à queima-roupa disparado pelo policial militar Guilherme Augusto Macedo. O caso ocorreu no dia 20 de novembro, na Vila Mariana, zona sul da capital.

“Aquela madrugada foi o início do meu passaporte para o inferno”, conta o pai de Marco, o médico e professor da Universidade de São Paulo (USP) Júlio Navarro. O jovem iria se formar no fim deste ano e participaria de um congresso no dia seguinte ao que foi morto.

O Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP) ofereceu denúncia contra os PMs em janeiro deste ano por homicídio por motivo torpe e sem possibilidade de defesa da vítima. Marcos estava desarmado. Apesar de tornar réus os agentes Guilherme e o policial Bruno Carvalho do Prado, que também participou da abordagem, a Justiça de São Paulo não determinou suas prisões.

“São 75 dias de luta por justiça, com muito sofrimento e lágrimas”, diz Júlio. Para o pai de Marco, a polícia de São Paulo se comporta como se estivesse em um mundo distópico onde inocentes, como o jovem, são tratados como criminosos e os policiais, como heróis. “Onde estamos. Que mundo é esse daqui?”

Marco Aurélio Cardenas Acosta, de 22 anos, baleado à queima roupa por um policial militar em novembro de 2024 (Foto: Arquivo pessoal)

Operações letais da polícia

O número de mortes pela polícia em 2024 é o maior desde 2019 — quando foram registradas 867 vítimas durante a gestão de João Dória, então do PSDB.

O ano de 2024 começou violento e marcado por discursos de apoio à letalidade policial vindos de Tarcísio e Derrite. A dupla já havia dado um recado à tropa quando, ao autorizar a Operação Escudo no ano anterior, não condenou nenhuma das ações que resultaram em mortes, apesar de denúncias de violações levadas inclusive à Organização das Nações Unidas (ONU).

A ação, deflagrada na Baixada Santista após a morte em serviço do soldado das Rondas Ostensivas Tobias Aguiar (ROTA), Patrick Bastos Reis, de 30 anos, durou 40 dias e teve tom de vingança, levando o terror ao litoral. Foram 28 mortes, entre elas a do encanador Willians dos Santos Santana, de 36 anos, morto com oito tiros dentro de casa, no Guarujá, em agosto daquele ano.

O sangue continuou sendo derramado na Baixada. A Operação Verão terminou em abril do ano passado com mais 56 mortes contabilizadas. A ação policial teve a fase mais letal e violenta após a morte do soldado Samuel Wesley Cosmo, de 35 amps, em fevereiro.

Entre os mortos estão os amigos de infância Leonel Andrade Santos, de 36 anos, e Jefferson Ramos Miranda, de 37 anos. Matheus Ramon Silva de Santana, de 22 anos, que tinha perdido o irmão adolescente meses antes na Operação Escudo, também morreu. O jovem levou tiros de fuzil ao ser abordado por policiais militares perto da casa em que morava com a mãe.

Protesto em dezembro de 2024 pediu o fim da violência policial e a saída do secretário da Segurança Pública Guilherme Derrite ( Foto: Daniel Arroyo/ Ponte Jornalismo)

Tarcísio: ‘Tô nem aí’

Cobrado pelas mortes, o governador Tarcísio se mostrou indiferente em uma declaração feita em março. “Pode ir na ONU, pode ir na Liga da Justiça, no raio que o parta, que eu não tô nem aí”, disse, ao responder sobre denúncias de violações cometidas pela polícia.

O tom de Tarcísio só mudou no fim do ano, quando a gestão foi confrontada com sucessivas denúncias de violência nas manchetes de jornais e telejornais. Um dos casos mais emblemáticos foi o de um jovem jogado de uma ponte pelo policial militar Luan Felipe Alves Pereira. A situação foi filmada por testemunhas e Tarcísio enfim veio a público dizer que estava errado quanto ao uso de câmeras corporais pelos agentes.

Durante a campanha eleitoral em 2022, Tarcísio fez críticas ao equipamento. “[…] isso representa um voto de desconfiança para o policial”, chegou a declarar. Em dezembro passado, no entanto, disse que estava “completamente errado” sobre a questão e chegou a dizer que ampliaria o programa.

O novo Ouvidor das Polícias, Mauro Caseri, vê com preocupação o aumento da letalidade policial em São Paulo. Para Mauro, os dados apontam “para uma performance contrária à vida e a uma segurança pública que proteja os cidadãos”.

“Desastrosas declarações em favor da violência e da letalidade, idas e vindas em apoio às câmeras operacionais portáteis, entre outros equívocos, acabam passando para a tropa uma percepção errônea de que seria aceitável se cometer ilegalidades. Sem uma postura clara e firme dos comandantes sobre as boas práticas policiais, não será possível reverter esse quadro a curto prazo. É o que esses números têm mostrado”, critica o Ouvidor.

Mauro avalia que o problema da segurança pública é complexo e de caráter transversal. O ouvidor diz que o órgão trabalha em frentes como a defesa da adoção das câmeras com gravação ininterrupta e cumprimento da norma que prevê o uso progressivo da força nas abordagens.

‘Licença para matar’

Apesar da letal operação, que perdurou de dezembro de 2023 até abril do ano passado, outubro foi o mês com maior registro de mortes: 96. Para a pesquisadora do Instituto Sou da Paz, Malu Pinheiro, isso demonstra que a letalidade é uma escolha política de Tarcísio e Derrite.

“O governo do Tarcísio, sob o comando de Derrite na Secretaria da Segurança Pública, fez essa escolha política por uma atuação da polícia que seja mais baseada nos confrontos e com essa licença para matar”, avalia Malu.

Os policiais em serviço foram os que mais mataram em 2024 — 676 pessoas foram mortas durante o expediente dos agentes, momento em que o Estado tem mais controle sobre a ação dos servidores. O número é 76% maior do que o registrado no ano anterior.

Considerando apenas as mortes cometidas por policiais militares, o total de mortos foi 776 pessoas. Neste caso, os PMs também mataram mais em serviço (650 mortes). O total supera em 84% o registrado no primeiro ano de Tarcísio e Derrite e em 153% o que foi registrado antes da dupla chegar ao poder.

Para especialistas em segurança pública, um indicador que mede o uso excessivo da força é comparar homicídios dolosos e mortes praticadas pela polícia. Segundo estudos de Ignacio Cano, o ideal é que essa proporção seja de até 10%. Para Paul Chevigny índices maiores do que 7% já são considerados abusivos.

O número de homicídios dolosos caiu 3,5% no ano passado em comparação com 2023. Portanto, a proporção de mortos pelas polícias ficou em 24% em 2024 — o maior índice da série histórica [abaixo].

Crianças e adolescentes na mira

A pesquisadora também destaca que a gestão de Tarcísio é marcada pelo aumento nas mortes na infância e juventude, grupos em que as mortes tinham sido reduzidas com a implementação das câmeras nas fardas. Um estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) mostrou que o uso do equipamento salvou 68 adolescentes de serem mortos em 2019.

Em 2024, 70 dos mortos pelas polícias tinham até 18 anos. O total aumentou 48% em relação ao ano anterior e 62% em relação a 2022, quando São Paulo era governada pelo vice de João Dória, Rodrigo Garcia (PSDB).

São exemplos da violência os casos de Ryan da Silva Andrade Santos, de 4 anos, e Gregory Ribeiro Vasconcelos, de 17 anos, mortos por policiais militares no Morro São Bento, em Santos, em novembro do ano passado. A criança brincava na rua quando foi ferida com um tiro no abdômen. Em fevereiro, Ryan já tinha perdido o pai, Leonel, que usava muletas, morto na Operação Verão.

Homens negros são maioria entre vítimas

Com base na série histórica avaliada, é possível dizer que a polícia de São Paulo mata mais homens do que mulheres. Em 2024, das 814 mortes, 806 eram de homens. Outro dado é que pretos são a maioria entre os mortos pela mesma polícia. No ano passado, vítimas pretas foram 62% do total de mortes decorrentes de intervenção policial.

“As polícias não veem a questão racial como um problema na sua atuação, mas quando nós olhamos para os números, o que temos visto é que a população preta é a mais afetada pela letalidade policial e também por outras arbitrariedades que a polícia comete contra a população, principalmente a negra e periférica”, avalia.

Dados do MP-SP

A Ponte usou dados da SSP-SP para a análise presente nesta matéria e nas demais divulgadas nos últimos anos. Contudo, esse não é o único banco de dados sobre letalidade. O MP-SP também divulga dados sobre mortes em decorrência de intervenção policial, computados pelo Grupo de Atuação Especial da Segurança Pública e Controle Externo da Atividade Policial (Gaesp).

O Gaesp apurou 811 mortes cometidas pelas polícias em São Paulo. O número é menor do que os 814 registrados pela SSP. A Ponte questionou o Ministério Público sobre a diferença nos números, mas não obteve retorno.

Os dados do MP também registraram uma alta nas mortes cometidas por policiais militares em serviço. Das 760 vítimas, 674 foram mortas por PMs durante o turno de trabalho.

A Ponte procurou a SSP-SP solicitando um posicionamento sobre o aumento da letalidade e de medidas que vêm sendo tomadas para redução deste número. Não houve retorno até a publicação desta reportagem. Caso haja, a matéria será atualizada.

https://iclnoticias.com.br/sp-maior-alta-letalidade-policial-em-uma-decada/