Fuzilamento de famintos em Gaza é o Massacre de My Lai do governo Netanyahu


Reinaldo Azevedo
Colunista do UOL
Pai e filho assassinados por tropa americana no massacre de My Lai, no Vietnã, e os famintos fuzilzados de Gaza por forças israelenses
Pai e filho assassinados por tropa americana no massacre de My Lai, no Vietnã, e os famintos fuzilzados de Gaza por forças israelenses Imagem: Ronald L. Haeberle/Getty Images; AP

O morticínio dos famintos em Gaza é o "Massacre de My Lai" de Israel. Se não sabem, no dia 16 de março de 1968, integrantes da Companhia Charlie chegaram à aldeia com esse nome, no Sul do Vietnã, à caça de vietcongs. O grupo tinha sofrido diversas baixas e vivia aterrorizado. Recebeu uma informação de que os inimigos estavam infiltrados na aldeia. A artilharia precedeu a chegada da tropa, o que levou mulheres, homens e crianças a se esconder, assustados, em abrigos. Tidos como combatentes, a matança começou. O mínimo das estimativas fala em 347 mortos. Há relatórios que apontam 504. Entre as vítimas, bebês e 17 grávidas.

Houve uma operação para esconder o horror. A opinião pública americana e o mundo só ficaram sabendo do que se passou em My Lai no dia 12 de novembro de 1969, numa reportagem do jornalista Seymour Hersh, que recebera a informação de que um oficial do Exército, o tenente William Calley, que comandou a operação, seria julgado pela morte de então supostos 109 civis. A revelação dos desatinos mudou a percepção sobre a guerra.

Como escreveu Christopher J. Levesque no New York Times, o terror produzido naquele dia 16 de março de 1968 havia começado bem antes. O abuso contra civis era rotina na Companhia Charlie. Usavam-se prisioneiros como detectores humanos de minas terrestres e se recorria regularmente à tortura em interrogatórios.

Afirma Levesque:
"A morte do sargento Cox preparou o cenário para o massacre de My Lai. No dia 15 de março, a companhia realizou uma cerimônia fúnebre na qual o capitão Medina lembrou à companhia as baixas sofridas. Havia perdido metade de sua força em apenas dois meses. O Primeiro Pelotão do Tenente Calley estava reduzido a 27 dos 45 homens originais.

O capitão Medina argumentou que a Companhia Charlie não poderia arcar com mais baixas. Precisavam, então, se unir e ser agressivos na perseguição ao inimigo. Logo depois do funeral, o capitão Medina informou a companhia a sua próxima missão: um ataque a My Lai para destruir os restos de uma das unidades mais letais do Vietcong.

As instruções para o ataque levaram muitos dos subordinados do capitão Medina a acreditar que a sua missão era matar todos na aldeia, abater o gado, destruir os poços e arrasar as moradias porque todos os que viviam em My Lai ou eram um membro do Vietcong ou simpatizante do Vietcong."

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VOLTEMOS A ISRAEL
O mundo está perplexo com as cenas dantescas de Gaza. A intenção das forças israelenses ao divulgar as imagens feitas por drones -- para tentar responsabilizar os próprios palestinos pelo mal que os acometeu -- não poderia ser mais abjeta.

A indagação óbvia que resta a quem conserva um tanto de juízo é uma só: aquele formigueiro de pobres desgraçados, que se entregaram à morte — e, com efeito, houve quem perecesse ali — por um pouco de alimento os torna culpados exatamente de quê? De suicídio? O governo de Netanyahu perdeu qualquer noção de pudor. Na segunda, vimos outa legião desesperada às margens do mediterrâneo, muitos se lançando nas águas, para tentar resgatar suprimentos da ajuda humanitária que acabaram caindo no mar. Era o maná dos condenados ao inferno.

E já não resta dúvida de que soldados abriram fogo contra os famélicos. Um oficial das Forças de Defesa, falando em sigilo à Reuters, afirmou que eles atiraram contra a multidão, matando um número indefinido. O diretor do hospital Kamal Adwan, informa o NYT, disse que a unidade recebeu cerca de cem pessoas feridas à bala.

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Avi Hyman, porta-voz do governo Netanyahu, testou a versão oficial à imprensa:
"Os caminhões ficaram sobrecarregados, e as pessoas que dirigiam os caminhões, que eram motoristas civis de Gaza, avançaram sobre as multidões, matando, de acordo com o que entendi, dezenas de pessoas"

Itamar Ben-Gvir, ministro da Segurança Nacional e um dos delinquentes políticos que integram o gabinete, não se viu obrigado a qualquer cuidado no Twitter:
"Deve ser dado apoio total aos nossos heroicos combatentes que operam em Gaza, que agiram de forma excelente contra uma multidão de Gaza que tentou prejudicá-los".

COMBINAÇÃO TÓXICA
Um dia antes desse evento tétrico, Thomas Friedman, um dos mais destacados jornalistas judeus do mundo e especialista em Oriente Médio, escreveu no NYT (texto publicado no Estadão):
"Passei os dias mais recentes viajando entre Nova Délhi, Dubai e Omã, e tenho um recado urgente para o presidente Joe Biden e os israelenses: estou vendo a rápida erosão da posição de Israel entre países aliados, um nível de aceitação e legitimidade que foi construído a muito custo ao longo de décadas. E, se Biden não for cuidadoso, o prestígio global dos Estados Unidos vai despencar junto com o de Israel.
Acho que os israelenses e o governo Biden não se dão conta da dimensão da fúria que está fervendo no mundo, abastecida por imagens nas redes sociais e na TV, por causa das mortes de tantos milhares de civis palestinos, em especial crianças, vítimas de armas fornecidas pelos EUA, na guerra de Israel em Gaza. O Hamas tem muito a responder por ter desencadeado essa tragédia humana, mas Israel e EUA são vistos como os responsáveis pelos acontecimentos agora e recebem a maior parte da culpa.
(...)
Um número tão grande de mortes de civis em uma guerra relativamente curta seria problemático em qualquer contexto. Mas quando tantos civis morrem em uma invasão vingativa lançada por um governo israelense sem nenhum horizonte político para o dia seguinte, e então, quando o primeiro-ministro israelense, Binyamin Netanyahu, finalmente oferece um plano para o dia seguinte que essencialmente diz ao mundo que Israel pretende agora ocupar indefinidamente tanto a Cisjordânia quanto Gaza, não surpreende que os amigos de Israel comecem a se afastar e a equipe de Biden comece a parecer perdida.
(...)
Mas, agora, temos uma combinação tóxica de milhares de baixas civis e um plano de paz de Netanyahu que promete apenas uma ocupação sem fim, independentemente de a Autoridade Palestina na Cisjordânia ser capaz de se transformar em uma entidade governante legítima, efetiva e de base ampla, capaz de controlar a Cisjordânia e Gaza e, um dia, ser uma parceira na paz.
Com isso, toda a operação israelense em Gaza começa cada vez mais a parecer aos olhos do público como um moedor de carne cujo único propósito é reduzir a população para facilitar o controle de Israel sobre ela.
Netanyahu se recusa até mesmo em pensar em fomentar alguma relação com os palestinos que não são do Hamas, porque se o fizesse, colocaria em risco o cargo de primeiro-ministro, que depende do apoio de partidos de extrema direita que defendem a supremacia judaica e jamais cederão um centímetro da Cisjordânia. É difícil acreditar, mas Netanyahu está pronto para sacrificar a legitimidade internacional de Israel, duramente conquistada, em troca de suas necessidades políticas pessoais. Ele não hesitará em derrubar Biden consigo.
(...)"


INTOLERÁVEL
Todos os aldeões de My Lai eram vietcongs para aquele destacamento americano. E todos os palestinos são Hamas para o governo homicida de Netanyahu. E não estou aqui a fazer uma interpretação. No dia 8 de abril, Avigdor Lieberman, ministro da Defesa, não poderia ter sido mais explícito na disposição de matar: "Não há inocentes em Gaza. Todos recebem um salário do grupo". Não havendo, então todos são culpados, o que explica a morte de pelo menos 10 mil crianças.

As vítimas de My Lai eram poucas quando se consideram os milhões de mortos no Vietnã. Os EUA só entraram em 1965 num conflito que começara em 1954. Até a reportagem de Seymour Hersh, em 1969, os favoráveis à intervenção ainda conseguiam impor a sua agenda. A coisa começou a virar ali. Até a derrota da grande potência em 1973. Os famintos executados, convenham, são poucos diante dos 30 mil mortos. Mas eles se tornam um emblema do que está em curso na Faixa de Gaza e, em certa medida, na Cisjordânia — progressiva e ilegalmente ocupada por colonos israelenses.

Quando aqueles palestinos só tinham de seu a fome — porque apagadas a sua casa, a sua história, os seus afetos —, um dos Exércitos mais bem treinados no mundo abriu fogo contra eles. No comando da operação, não estavam um certo tenente William Calley ou um tal capitão Medina. Quem comanda o festim diabólico é Netanyahu e seu governo de psicopatas.

Friedman alerta:
"É difícil acreditar, mas Netanyahu está pronto para sacrificar a legitimidade internacional de Israel, duramente conquistada, em troca de suas necessidades políticas pessoais."

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"Não vai criticar os terroristas do Hamas?" A qualquer momento e sempre. Quem os está legitimando é o "moedor de carne humana" comandado por um criminoso de guerra, não eu.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL. 


OLHAR APURADO

Uma curadoria diária com as opiniões dos colunistas do UOL sobre os principais assuntos do noticiário. 

https://noticias.uol.com.br/colunas/reinaldo-azevedo/2024/03/01/fuzilamento-de-famintos-em-gaza-e-o-massacre-de-my-lai-do-governo-netanyahu.htm

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