Reinaldo Azevedo

 

A tese de Moraes, a corrosão da democracia e os crimes em nome da liberdade

Reinaldo Azevedo
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A execução de Manon Roland, um crime cometido "em nome da liberdade"; no destaque, o ministro Alexandre de Moraes, autor da tese sobre direito eleitoral e o populismo no tempo das redes
A execução de Manon Roland, um crime cometido "em nome da liberdade"; no destaque, o ministro Alexandre de Moraes, autor da tese sobre direito eleitoral e o populismo no tempo das redes Imagem: Reprodução; Reprodução

A frase inicial é irresistível: "Liberdade, liberdade, quantos crimes se cometem em teu nome!". É atribuída a Manon Roland, personagem da Revolução Francesa, quando, a caminho da guilhotina, teria passado diante justamente de uma estátua da liberdade. Seu crime? Nenhum! A corrente política a que pertencia dentro do movimento revolucionário tinha sido derrotada. Os extremistas lhe cortaram a cabeça no dia 8 de novembro de 1793, na fase revolucionária conhecida como "Terror", liderada pelos jacobinos.

Nota: já escrevi mais de uma vez que nunca acredito muito nessas tiradas de efeito à beira do abismo. Mas vá lá. A síntese é poderosa. Com alguma licença se pode dizer que os assassinos de Manon constituíam a extrema-esquerda da hora. Os criminosos da liberdade que hoje assombram as democracias são de extrema-direita.

Alexandre de Moraes, ministro do STF e presidente do TSE, os conhece como poucos. Ele é também professor associado da Faculdade de Direito da USP, a lendária São Francisco, e se candidata agora à vaga de professor titular. Concorre com uma tese de 298 páginas intitulada "O DIREITO ELEITORAL E O NOVO POPULISMO DIGITAL EXTREMISTA - Liberdade de escolha do eleitor e a promoção da Democracia".

Os respectivos títulos dos quatro grandes capítulos já expõem o percurso que fez, a saber:
- CAPÍTULO 1. LEGISLAÇÃO SOBRE O COMBATE À DESINFORMAÇÃO, NOTÍCIAS FRAUDULENTAS, DISCURSOS DE ÓDIO E ANTIDEMOCRÁTICOS;

- CAPÍTULO 2. LIBERDADE DE ESCOLHA PELOS ELEITORES, ACESSO À INFORMAÇÃO E LIBERDADE DE EXPRESSÃO;

- CAPÍTULO 3. DESINFORMAÇÃO, NOTÍCIAS FRAUDULENTAS, DISCURSOS DE ÓDIO E ANTIDEMOCRÁTICOS NAS REDES SOCIAIS E SERVIÇOS DE MENSAGERIA PRIVADA - INSTRUMENTOS DE CORROSÃO DA DEMOCRACIA;


- CAPÍTULO 4. A ATUAÇÃO DA JUSTIÇA ELEITORAL NO COMBATE À DESINFORMAÇÃO, NOTÍCIAS FRAUDULENTAS, DISCURSOS DE ÓDIO E ANTIDEMOCRÁTICOS EM PROTEÇÃO À LIBERDADE DE ESCOLHA DO ELEITORADO.

SÍNTESE DAS SÍNTESES
Moraes evidencia, em seu trabalho, que, sob o manto da liberdade, a propagação da desinformação, das notícias fraudulentas e do discurso do ódio violam direitos garantidos pela Constituição e, em verdade, impedem a liberdade de escolha.

Os princípios da República e os direitos fundamentais elucidados nos cinco primeiros capítulos da Carta são cotidianamente aviltados nas redes, e os crimes impunes se multiplicam e corroem a própria liberdade em nome da qual são cometidos. Nas suas palavras:
"Os novos populistas digitais extremistas, com a forte atuação de suas 'milícias digitais' -- verdadeira infantaria virtual antidemocrática -- e com a conivência passiva dos provedores das redes sociais e de serviço de mensageria privada, extrapolam ilicitamente todos os limites razoáveis e constitucionais da liberdade de expressão, pois dificultam, e não raras vezes impedem, o livre acesso a informações sérias e verdadeiras, com reflexos diretos na liberdade de escolha dos eleitores e das eleitoras, colocando em risco a higidez da Democracia.


Trata-se de patente desrespeito ao espírito da ideia do 'mercado livre de ideias' no campo político, que não protege as informações deliberadamente falsas, fraudulentas e os discursos de ódio e antidemocráticos ("dano injusto" e "princípio do dano"), mas sim pretende possibilitar aos eleitores o livre acesso a todas as informações, por mais críticas e antagônicas que sejam, com o objetivo de gerar a melhor escolha possível dos governantes.

Como tenho constantemente afirmado: liberdade de expressão não é liberdade de agressão! Liberdade de expressão não é liberdade de destruição da democracia, das instituições e da dignidade e honra alheias! Liberdade de expressão não é liberdade de propagação de discursos de ódio e preconceituosos!"

A INÉRCIA
O autor vê um poder público, no geral, inerte e inerme diante de uma escalada organizada do que é, entendo, um assalto ao pacto civilizatório. Escreve:
"Os novos populistas digitais extremistas, inimigos da Democracia e do Estado de Direito, conseguiram instrumentalizar as redes sociais e os serviços de mensageria privada e, para atingir seus objetivos, aproveitaram-se da total inércia das instituições democráticas e organizaram sua máquina de desinformação, que vem atuando sem restrições com a divulgação de notícias fraudulentas, discursos de ódio e antidemocráticos direcionados para 'bolhas específicas', por meio de algoritmos que, alimentados pelos dados obtidos dos usuários nas próprias redes, são preparados para captar a melhor forma de convencimento dos eleitores, induzindo-os a determinados comportamentos.

As informações e os dados dos eleitores, obtidos previamente nas próprias redes sociais, são analisados e preparados tecnicamente, com o auxílio de mecanismos de inteligência artificial, para gerar a produção de notícias fraudulentas específicas, que, por sua vez, são programadas para atingir determinados grupos de eleitores, trabalhando seus traumas, temores, medos e anseios com a finalidade de fidelização política".

NATUREZA DA DEMOCRACIA
Não há democracia quando os indivíduos não são livres para exercitar a sua vontade. O ministro aponta:
"Nesse momento, a instrumentalização das redes sociais e de serviços de mensageria privada pelo novo populismo digital extremista, por meio da atuação de suas verdadeiras "milícias digitais", transformou-se em um dos mais graves e perigosos instrumentos de corrosão da democracia, exigindo nova postura legislativa e da Justiça Eleitoral.

Em defesa da democracia, portanto, há a necessidade de nova análise e renovado equacionamento das regras eleitorais, em face do reconhecimento das redes sociais e dos serviços de mensageria privada como os mais novos e eficazes instrumentos de comunicação de massa e, consequentemente, do agigantamento de seu poder político e da capacidade de influenciar a vontade do eleitorado.


A ausência de uma real e efetiva autorregulação e os perigos das notícias fraudulentas e massiva desinformação instrumentalizadas nas redes sociais e de serviços de mensageria privada, especialmente pelo novo populismo digital extremista, refletem diretamente na liberdade de escolha dos eleitores e das eleitoras (...)"

OMISSÃO METÓDICA E LUCRATIVA
Vimos o escarcéu que se fez quando o Congresso tentou regulamentar as redes. Formou-se uma espécie de frente em defesa da "liberdade de delinquir". Escreve Moraes:
"Os provedores das redes sociais e dos serviços de mensageria privada, por sua vez, buscando o lucro, nada fizeram para impedir sua própria instrumentalização. Pelo contrário, beneficiaram-se dos discursos de ódio e antidemocráticos, inclusive, criando mecanismos de monetização, pois a substituição da 'razão' pela 'emoção' nos debates e mensagens das redes sociais e serviços de mensageria privada significou exponencial aumento de audiência e interações, com forte e crescente reflexo econômico.

A constatação da transformação das redes sociais e dos serviços de mensageria privada nos mais eficazes e abrangentes instrumentos de comunicação de massa e a omissão deliberada na autorregulação exigem, portanto, a atuação do Poder Legislativo na edição de regras mínimas, tanto de caráter preventivo — que garantam o respeito à igualdade de condições eleitorais e protejam a livre e consciente vontade do eleitorado no momento de sua escolha - quanto de caráter repressivo — com a previsão de punições eleitorais, civis e penais aos candidatos e aos provedores das redes sociais e serviços de mensageria privada."

CONSTITUIÇÃO PARA QUÊ? E MEDIDAS PREVENTIVAS
Mas como é que fica a "liberdade de expressão", um direito garantido pela Constituição, em face da necessária regulação, defendida por Moraes?

Um parágrafo do trabalho ilumina as consciências e dirime dúvidas -- as honestas aos menos:
"Ambas as previsões constitucionais -- garantia constitucional da liberdade de comunicação social e livre manifestação de pensamento -- devem ser interpretadas em conjunto com o princípio democrático (CF, art. 1º, parágrafo único), a dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), a vedação a qualquer forma de discriminação (CF, art. 3º, IV), a inviolabilidade à honra e à vida privada (CF, art. 5º, X), bem como com a proteção à imagem (CF, art. 5º, XXVII, a), sob pena de responsabilização do agente divulgador por danos materiais e morais (CF, art. 5º, V e X); não sendo, portanto, possível a propagação de desinformação, notícias fraudulentas e discursos de ódio e antidemocráticos sem responsabilização posterior dos provedores das redes sociais e serviços de mensageria privada"

Convenham: parece elementar, não? O exercício de um direito não pode sufocar outros, não sendo, pois, aceitável que a liberdade de expressão se dê aviltando a dignidade de terceiros. Moraes fala de medidas preventivas necessárias para devolver aos indivíduos o seu poder de escolha:
"1- os provedores de redes sociais e de serviços de mensageria privada, portanto, devem ser solidariamente responsáveis, civil e administrativamente: (a) por conteúdos direcionados por algoritmos, impulsionados e publicitários cuja distribuição tenha sido realizada mediante pagamento ao provedor de redes sociais; (b) por contas inautênticas e redes de distribuição artificial; e (c) pela não indisponibilização imediata de conteúdos e contas com conteúdo de ódio e antidemocrático;"


2 - necessidade do estabelecimento de obrigação aos provedores das redes sociais de grande dimensão - na definição da legislação europeia são aqueles com mais de 45 milhões de usuários mensais — (...) - identificarem e avaliarem os riscos sistêmicos à democracia decorrentes da utilização de seus sistemas de algoritmos e inteligência artificial, apontando às autoridades competentes e tomando providências de autorregulação;

3 - a legislação deve adotar o "dever de transparência algorítmica", no sentido da necessidade do estabelecimento de critérios mínimos de transparência em relação à aleatoriedade e ao viés cognitivo dos algoritmos que, obviamente, respeitados a propriedade intelectual e o segredo industrial, possibilitem o entendimento de seu processo decisório, tanto pela possibilidade de inspeção do código-fonte — que especifica o método de "machine learning" — como pela indicação da metodologia utilizada para o direcionamento das decisões, que deve ser pautada pela legalidade, moralidade e ética;

4 - há a necessidade de estabelecer regramentos para as duas espécies de utilização de IA. A hipótese de utilização de IA para propaganda negativa deve ser proibida de maneira absoluta, devendo ser vedada a produção, a edição, a distribuição, a manipulação e a transmissão virtual de mídias de áudio ou visual materialmente enganosas, destinadas a manipular informações e difundir a crença em fato falso relacionado a candidatas, candidatos ou à disputa eleitoral."

CONCLUI O AUTOR:
"Os poderes de Estado e as Instituições não podem continuar a ignorar essa dura realidade sobre a constante, progressiva e alarmante corrosão que vem sofrendo a Democracia pelo novo populismo digital extremista, sendo necessário o estabelecimento de uma nova e específica legislação que preveja mecanismos de detectação de eventuais arbitrariedades e seletividades negativas no direcionamento de mensagens e que permita o efetivo combate aos ataques massivos de desinformação, notícias fraudulentas e discursos de ódio e antidemocráticos instrumentalizados pelas redes sociais e serviços de mensageria privada."

CONCLUO EU
É claro que a canalha autoritária não vai gostar da tese de Moraes. Também alguns do miolo mole que se dizem "liberais" hão de se insurgir, sempre em nome da "liberdade", contra alguns mecanismos necessários para a regulação das redes. Dos primeiros, por óbvio, nada espero. Quanto aos abobados, dizer o quê? Essa gente tem preferido dar piscadelas a fascistoides a enfrentá-los -- e, pois, esbirros de facistoides são.

No quarto capítulo de sua tese, o ministro expõe as muitas vezes em que foi dado ao TSE atuar para reprimir os criminosos e garantir os valores consagrados pela Constituição.

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Nos tempos sombrios dos folguedos golpistas, coube ao TSE, na esfera eleitoral, e ao Supremo, nas searas constitucional e penal, conter vocações despóticas. Mas ainda há muito a fazer. Até porque não são poucos os que falam em nome da liberdade para cometer crimes. E os que condescendem com seus malfeitos ou silenciam entram na fila da guilhotina.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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