Carta de Páscoa: milhões de crianças aguardam a subversão do renascimento

 


Jamil Chade - 

Colunista do UOL

09/04/2023 04h00

Neste fim de semana, crianças em todo o mundo saem em busca dos ovos de chocolate escondidos pelos jardins de nossa imaginação. 

Para os mais religiosos, um dia central para reafirmar a fé.

Mas a páscoa é, acima de tudo, a reinvenção do futuro. 

O renascimento como resposta. E talvez nunca tenhamos precisado tanto de uma páscoa como agora. Não é uma opção. É uma questão de sobrevivência.

Todos os indícios apontam que caminhamos a um desastre climático. 

Os avanços sociais de 30 anos foram desfeitos e a fome é a realidade uma vez mais para milhões de pessoas. Voltamos a falar sobre o impensável e sua explosão em forma de cogumelo.

Parece que não nos lembramos mais das crianças mudas telepáticas.

 Estaríamos já cegos?

A data, tão simbólica para o cristianismo, é o momento ideal para falarmos na urgência do renascimento de vidas e das rotas alternadas pela pobreza e escravidão.

Lembro-me como se fosse hoje daquela segunda-feira à beira do lago Awassa, na Etiópia. 

Teses científicas e arqueólogos acreditam que é nesta região que uma espécie de berço da humanidade poderia ter sido estabelecido. 

Eram 7h da manhã e, em várias partes do mundo, esse seria o horário que meninos e meninas estariam a caminho de suas escolas. 

Mas, naquele local do interior da África, esse era o horário no qual crianças a partir de cinco anos de idade estavam retornando de horas de trabalho em pequenos botes.

Sem alimentos e sem dinheiro, as famílias da região sul de um dos países mais miseráveis do mundo deram seus filhos como mão de obra barata --para não dizer escravizada-- aos pescadores do lago. Em troca, cada uma das mais de 400 crianças nessa situação ganhava US$ 0,50 por dia.

Muitos eram estuprados pela noite pelos donos dos barcos, enquanto seus colegas tentavam não cair no lago. 

Nenhum deles recebia qualquer tipo de treinamento. 

Os barcos, construídos no próprio local, não ofereciam nenhuma segurança e, permanentemente, uma das crianças era obrigada a retirar água que se infiltrava. 

Ninguém sabia nadar.

Há alguns anos, eu visitei o lago ao lado do amigo e grande fotógrafo Juca Varella. 

Ali, nos deparamos com uma imagem estarrecedora. Famintas depois de horas de trabalho, algumas das crianças comiam os restos dos peixes não utilizados ou considerados como inadequados para o mercado local.

Alguns devoravam os restos crus à beira mesmo do lago, em silêncio e exaustos depois de toda uma madrugada de trabalho. 

Disputavam com pelicanos, gaivotas, cachorros e outros animais que também se amontoavam em uma cena de demonstração da miséria.

 A fome escraviza.

Tarakein Takal era um dos 400 meninos que trabalhava com os pescadores. Ele contava que deixou sua família que vivia a 20 quilômetros do lago porque a seca estava se prolongando.

Os postos de trabalho semiescravo eram até mesmo disputados. Gali, de nove anos, apenas observava seus amigos limpando os peixes. Ele não foi "contratado" porque o número de criança já superava as necessidades. Desolado, percorria o local em busca de um facão para mostrar que sabia limpar os peixes.

No início da tarde, depois de uma noite no lago e de passar toda a manhã limpando os peixes, as crianças não voltariam nem para a escola e nem para suas famílias. 

Alojamentos que pareciam verdadeiros campos de concentração à beira do lago serviam de lar. Lá, mais uma vez, corriam o risco de serem violentados.

O vigia que andava armado pelo local não estava ali para protegê-los.

Anestesiadas de cansaço e traumatizadas pelos horrores, as crianças poderiam dormir apenas algumas horas, até que os donos dos barcos os chamariam para sair ao lago para mais uma madrugada estrelada e de dramas para os meninos etíopes.

Crianças trabalhavam em situação degradante para pescadores no Lago Awasa, a 360 km ao sul de Addis Abeba - Juca Varella - Juca Varella
Crianças trabalhavam em situação degradante para pescadores no Lago Awasa, a 360 km ao sul de Addis Abeba Imagem: Juca Varella

Em pleno século 21, a escravidão é ainda uma realidade. No Brasil, como temos visto com uma estupidez teimosa. Ou em tantos outros cantos do mundo.

Na beira do lago Awassa, de pouco serve a Declaração Universal dos Direitos Humanos e seu artigo 4: "Ninguém será mantido em escravidão ou servidão, a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas".

Há quem sustente que, hoje, os novos escravizados são mais baratos que há 200 anos. Pior, são descartáveis.

Num desses estudos,

 concluiu-se que um escravizado nos Estados Unidos em 1850 custava o equivalente a US$ 40 mil, em moeda atual. Hoje, o custo de manter um escravizado por mês, segundo o estudo da Free the Slaves não chega a US$ 90.

Em 1850, o custo envolvia capturar esses escravizados, transporta-los até os Estados Unidos e revendê-los. 

Manter seus escravizados adquiridos, portanto, era proteger investimentos feitos. Hoje, a vulnerabilidade que afeta milhões de pessoas os torna baratos e dispensáveis.

Há pouco mais de dois mil anos, o personagem central da páscoa causou um terremoto ao poder estabelecido. Incapaz de ver em inválidos, pobres, mulheres e escravizados a voz de seres humanos, o regime em vigor foi sacudido pela ideia de uma insubordinação revolucionária.

Neste fim de semana em pleno século 21, milhões de criança aguardam a subversão do renascimento. 

Enquanto elas estiverem algemadas pela fome, pela pobreza ou pela escravidão no interior do Brasil ou da África, é a construção do conceito de humanidade que está incompleta.

Feliz Páscoa. Feliz dia do renascimento da subversão.

Jamil

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https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2023/04/09/carta-de-pascoa-milhoes-de-criancas-aguardam-a-subversao-do-renascimento.htm

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