Sob Bolsonaro, entidade indígena liderada por atual ministra de Lula foi alvo da Abin



 Colunistas ICL

Jamil Chade
Jamil Chade

Cruzando fronteiras com refugiados, testemunhando crimes contra a humanidade, viajando com papas ou cobrindo cúpulas diplomáticas, Jamil Chade percorreu mais de 70 países. Com seu escritório na sede da ONU em Genebra, ele foi eleito o segundo jornalista mais admirado do Brasil em 2025. Chade foi indicado 4 vezes como finalista do prêmio Jabuti. Ele é embaixador do Instituto Adus, membro do conselho do Instituto Vladimir Herzog e foi um dos pesquisadores da Comissão Nacional da Verdade.

Sob Bolsonaro, entidade indígena liderada por atual ministra de Lula foi alvo da Abin

Abin monitorou ações de lideranças indígenas, alertando para riscos para exportadores do agro brasileiro e ameaça de conflito
26/12/2025 | 05h49  

Líderes indígenas foram monitorados pela Agência Brasileira de Inteligência durante o governo de Jair Bolsonaro, enquanto o Palácio do Planalto desmontava a Funai, fustigava grupos autóctones e prometia que não iria demarcar novas terras. Uma das entidades acompanhadas de perto pela Abin era a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), liderada naquele momento por Sonia Guajajara, hoje a ministra dos Povos Indígenas do governo Lula.

A informação faz parte de documentos da agência e que foram obtidos após uma longa batalha judicial pela Fiquem Sabendo, organização sem fins lucrativos especializada em transparência pública. Desde meados de dezembro e pelas próximas semanas, o ICL Notícias traz com exclusividade dezenas de informes, relatórios e dados até hoje mantidos como confidenciais pela Abin.

Um dos focos do trabalho da agência ao longo dos anos de Bolsonaro foi a questão indígena e seu impacto doméstico e internacional. Num relatório de 11 abril de 2019, por exemplo, a Abin trazia um detalhado acompanhamento dos atos que estavam sendo organizados pelos indígenas brasileiros em protesto contra Bolsonaro. O foco era Acampamento Terra Livre (ATL). “A tendência é de que os militantes indígenas manifestem suas reivindicações de forma enérgica devido aos recentes posicionamentos do Governo Federal para as políticas indigenistas, com probabilidade de confronto entre os participantes da marcha e integrantes das forças de segurança pública”, disse o informe. “Também é alta a probabilidade de ocupação de prédios públicos na região da Esplanada dos Ministérios”, alertou.

O relatório trazia até mesmo um mapa e fotos do projeto de instalação do acampamento no perímetro da Esplanada dos Ministérios.

Outro destaque da Abin se referia aos trabalhos das lideranças indígenas para conseguir arrecadar recursos para o ato. “Dos RS 50 mil almejados pela APIB para auxiliar no custeio do acampamento, foram arrecadados R$ 12,3 mil- 24,5% do total”, apontou o informe.

O que ainda chamava a atenção da Abin era o fato de o convite para doações estar sendo realizado em diversos idiomas, como inglês, espanhol e francês, numa tentativa de atrair parceiros estrangeiros. “Em edições anteriores, a APIB conseguiu atingir a meta de arrecadação no ambiente virtual. Em 2017, coletou R$ 45 mil; já em 2018, a arrecadação virtual totalizou aproximadamente R$ 20 mil”, disse.

De acordo com o informe, a expectativa era de que o ato contasse com 6 mil participantes. Mas a Abin estimava que o número seria bem inferior.

O risco de um confronto era outro ponto do relatório de inteligência. “Nos últimos anos, foram registradas ocorrências de enfrentamento de militantes da marcha com integrantes dos órgãos de segurança pública, além de tentativa de depredação de patrimônio público e privado. Em 2014 e 2017, houve tentativas de invasão ao edificio-sede do Congresso Nacional. A tropa de choque da Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF) precisou ser acionada e indígenas atiraram flechas contra os militares. Em 2014, policiais militares ficaram feridos em decorrência de enfrentamentos”, disse.

Trecho do documento da Abin

“Apesar de não terem sido detectadas quaisquer incitações para atos de violência no ambiente virtual, os movimentos sociais indígenas estão articulados e insatisfeitos com a atual gestão do Govero Federal e a atuação do Poder Legislativo no encaminhamento de suas demandas”, admitiu.

A agência explicava que, desde a edição da Medida Provisória nº 870/2019, movimentos indigenistas alegavam ter havido um “esvaziamento das atribuições da Fundação Nacional do Indio (Funai) no processo de demarcação de territórios”. “Como forma de protesto, promoveram de 17 a 31 jan. 2019 ocupações de sedes de órgãos públicos e bloqueios de rodovias em localidades do País. No período de 25 a 29 mar. 2019, realizaram a “Semana de Mobilização Nacional em Defesa da Saúde Indígena”, em oposição à tentativa do Governo Federal de municipalizar o atendimento à saúde indígena”.

“Houve ocupações de prédios públicos – a exemplo de unidades do Ministério da Saúde – bem como interdições temporárias de vias públicas e rodovias em onze estados”, disse.

“Haja vista que os movimentos sociais indígenas estão articulados e mobilizados, os manifestantes presentes ao 15- ATL tendem a defender de forma enérgica suas reivindicações junto às autoridades constituídas, o que eleva a probabilidade de ocorrência, durante a marcha do evento na Esplanada dos Ministérios, de confrontos entre manifestantes e membros dos órgãos de segurança pública, bem como de tentativas de depredação de patrimônio”, alertou.

“Nesse caso, seriam alvos potenciais para ações dos manifestantes as sedes do Congresso Nacional, Palácio do Planalto, Ministério da Justiça, Ministério da Saúde e Advocacia-Geral da União”, previa.

Ministra denuncia tentativa de criminalizar lideranças indígenas

Naquele ano, a diretora-executiva da Apib, Sonia Guajajara, alertou: “Estamos assistindo a um genocídio legislativo”.

Procurada nesta semana, a atual ministra afirmou ao ICL Notícias que, embora o monitoramento feito pela ABIN às lideranças indígena não fosse uma novidade, ele se intensificou entre 2019 a 2022, justamente com Bolsonaro no poder.

“Isso se intensificou muito para monitorar ações, protestos, manifestos e até nos acusar de lesa pátria”, disse a ministra.

Ao ficar sabendo do conteúdo dos relatórios publicados pelo ICL, a ministra ainda destacou como um dos resultados a “tentativa de criminalização individual de lideranças, incluindo eu mesma que estava à frente da APIB”. “Sempre achei inaceitável”, completou.

Ação no exterior: alerta para risco de prejuízo aos exportadores

Aquele não seria o único ato de monitoramento da Abin em relação à entidade liderada pela atual ministra dos Povos Indígenas. Em 17 maio de 2019, num outro informe, a agência alertou para o fato de que ambientalistas europeus lançaram um manifesto defendendo regras mais rígidas a serem impostas pela União Europeia às agroexportações brasileiras. “A principal preocupação dos ambientalistas estrangeiros é o desmatamento para o cultivo de soja, criação de gado e exploração de minério de ferro, principalmente no bioma amazônico”, disse.

A questão, porém, é que a iniciativa contava como o apoio da Apib. “Em 26 abr. 2019, foi publicado na Revista Science manifesto assinado por mais de 600 pesquisadores e pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), que representa cerca de 300 comunidades indígenas brasileiras, defendendo que a União Europeia (UE) não compre bens agrícolas brasileiros que tenham sido produzidos em terras recém-desmatadas”, destacou.

“Exigem ainda a observância do direito de consulta prévia às populações indígenas afetadas por políticas públicas, o qual é garantido pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT)”, explicou.

O manifesto recebeu apoio de deputados e candidatos ao Parlamento Europeu, com destaque para o da vice-presidente daquela instituição, Heidi Hautala. Ela fazia parte dos Verdes, grupo político com pauta ambientalista, composto naquele momento por 52 eurodeputados (deputados do Parlamento Europeu) de 18 nacionalidades.

No manifesto, demanda-se à UE que, no acordo comercial com o Brasil, seja exigida a observância de três condições: a) o respeito à Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, b) o refinamento de mecanismos de certificação de origem para rastrear commodities associadas ao desmatamento e a violações dos direitos dos indígenas e c) consulta e consentimento prévio das populações indígenas para definir critérios sociais e ambientais para o comércio de commodities.

“A maior preocupação é o desmatamento para o cultivo de soja, criação de gado e exploração de minério de ferro, principalmente no bioma amazônico. Esses três produtos representaram cerca de 22% do valor exportado pelo Brasil para a UE entre janeiro e abril 2019”, explicou.

Para a Abin, a ofensiva contra as exportações brasileiras poderia ter um impacto negativo. A publicação do manifesto e outras iniciativas teria “o potencial de prejudicar as agroexportações brasileiras”.

Fachada da Abin (Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil)

Risco de conflito

Na agência indígena, a Abin também alertou ao Palácio do Planalto em outro informe sobre o risco de violência no campo. E 4 de abril de 2019, a agência explicava o impacto de uma decisão da a Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que, dias antes, havia negado mandados de segurança em que produtores rurais da Bahia demandavam a suspensão do processo administrativo de revisão da demarcação da Terra Indígena (TI) de Barra Velha. localizada no extremo sul do estado. “Com a decisão, o colegiado revogou liminares concedidas em 2013 pelo relator anterior das ações, que haviam suspendido o processo de reconhecimento da ampliação da área indígena”, explicou.

Para a agência, a decisão “contribui para o aumento da tensão existente entre a comunidade indígena e os produtores rurais da região, ainda que não tenha havido registro de violência nos últimos anos”.

“Observa-se, no momento, incremento nas iniciativas de articulação por parte de lideranças indígenas e rurais nos planos estadual e federal”, advertiu.

“Do ponto de vista da dinâmica do conflito, a relativa estabilidade observada desde 2013 decorreu, em larga medida, do congelamento do litígio no plano judicial. Com a perspectiva de retomada do processo, desdobramentos judiciais e administrativos subsequentes tendem a impactar significativamente a expectativa dos atores do contencioso, principalmente porque inexiste grupo de trabalho – ou estrutura politico-administrativa intersetorial equivalente – investido de capacidade política para mediar a construção de termos de acordo entre as partes”, completou.

Histórico de espionagem

Para a Apib, o monitoramento da agência de inteligência não é uma novidade. Em 2020, noventa organizações da sociedade civil e 72 parlamentares enviaram uma carta à secretária-executiva da Convenção do Clima da ONU, Patricia Espinosa, cobrando providências sobre a presença de agentes da Abin espionando ambientalistas, diplomatas e congressistas na COP25, a conferência do clima de Madri.

A informação sobre a atuação da agência havia sido revelada, naquele ano, pelo jornal O Estado de S.Paulo, que destacou como quatro arapongas foram enviados para a COP para monitorar atividades de ambientalistas, em especial o chamado Brazil Climate Action Hub, organizado por ONGs brasileiras. Questionado, o general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional, ao qual a Abin era subordinada, admitiu que mandou os agentes para espionar “maus brasileiros”.

Na carta enviada pela Apib e por dezenas de outras instituições em 29 de outubro de 2020, as lideranças afirmam terem ficado “indignadas ao descobrir por meio da imprensa que o governo do Brasil designou quatro agentes secretos para monitorar tanto as atividades da sociedade civil, quanto os próprios delegados do Brasil, durante a COP25 em Madri”.

“A decisão de uma Estado de espionar os delegados por qualquer motivo é extremamente preocupante. Viola a segurança dos delegados dentro das instalações da ONU, causando enorme constrangimento. Compromete a privacidade, o pensamento e o discurso da liberdade, e a imunidade consagrada na própria Carta das Nações Unidas”, alertaram.

Como foram obtidos os documentos

O acesso aos documentos da Abin ocorreu depois de seis anos de batalha por parte da Fiquem Sabendo e é considerado como um divisor de águas para a transparência no Brasil.

A ação segue tramitando para garantir que todos os documentos sejam entregues, sem tarjas e n íntegra, como é o caso ainda de vários informes.

Documentos classificados são informações públicas que, por motivos de segurança da sociedade ou do Estado, são temporariamente mantidas em sigilo. Os documentos obtidos já foram desclassificados e, portanto, estão fora do prazo de sigilo. De fato, entre 2014 e 2020, mais de 400 mil documentos federais perderam o sigilo.

Mas o acesso nem sempre está garantido. Assim, o projeto Sem Sigilo começou em 2019, quando a entidade convocou voluntários para pedir documentos cujo prazo de sigilo expirou. A iniciativa coletou milhares de páginas de dezenas de órgãos, mas enfrentaram resistência de entidades como Abin, GSI, Ministério da Defesa, Forças Armadas, Polícia Federal e Itamaraty.

Em 2020, eles ajuizaram uma ação contra a Abin. A ideia era enfrentar o órgão mais resistente à transparência pública porque apostavam que, se ganhassem, outros cairiam por gravidade.

Em 2021, o MPF acolheu parcialmente os argumentos e sugeriu que a Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência (CCAI), do Congresso, analisasse os documentos. Corretamente, o Congresso se recusou, afirmando não ser sua competência.

Em 2023, a ação sofreu uma derrota em primeira instância. A Justiça aceitou o argumento da União de que a Abin poderia decidir sozinha o que divulgar ou não — mesmo contrariando o texto da LAI.

Mas, em maio de 2025, a 6ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) acatou o pedido e condenou, por unanimidade, a União e a Abin a entregar um conjunto de documentos mantidos ilegalmente sob sigilo.

A decisão tem um impacto profundo, já que:

Estabelece jurisprudência: é a primeira decisão em nível federal que reafirma que nenhum órgão está acima da LAI — e que seus prazos não são opcionais.

Cria precedente: o entendimento agora pode ser replicado para cobrar outros órgãos que seguem descumprindo a Lei, como o Itamaraty e as Forças Armadas.

Desmonta o sigilo eterno: reafirma que a transparência é a regra, e o sigilo, a exceção — com prazo. 

https://iclnoticias.com.br/sob-bolsonaro-indigena-alvo-da-abin/



Postagens mais visitadas deste blog

RICOS, PAGUEM A CONTA!