Impeachment - A desastrosa gestão de Jair Bolsonaro em relação à pandemia une os mais diversos setores da sociedade civil — com linhas políticas diferentes e até mesmo opostas — na exigência de afastamento do presidente. A preservação da vida e a vacinação estão acima de todas as ideologias
Antonio Carlos Prado e Mariana Ferrari
29/01/21 -
Jair Bolsonaro é tão ruim como presidente da República, que um mérito ele tem: o de reunir e atrair contra si os mais diversos setores da sociedade, integrados por representantes de diferentes ideologias e linhas políticas até então inconciliáveis. Haja incompetência no exercício do cargo e haja cometimento de crimes de responsabilidade. Há cinco anos, seria chamado de lunático alguém que afirmasse que chegaria o dia no qual grupos de esquerda, que apoiavam a manutenção de Dilma Rosseff no Planalto, e movimentos de direita, como o Vem Pra Rua, a favor do afastamento da presidente, estariam unidos em novos protestos. E com uma palavra de ordem unificada: o impeachment de Jair Bolsonaro. E por um motivo comum: a maneira criminosa como ele vem tratando a questão sanitária da pandemia e, sobretudo, as mortes por falta de oxigênio em Manaus. Seria rotulado, igualmente, de louco quem levantasse a hipótese de que lideranças religiosas se mobilizariam para afastar um presidente.
Também essa improvável suposição tornou-se realidade na semana passada. Diante do “desprezo” de Bolsonaro “pela vida humana”, a ecumênica articulação Frente da Fé, formada por lideranças católicas e evangélicas, protocolizou na Câmara dos Deputados um pedido de impeachment do presidente. O grupo tem o apoio de poderosas entidades como o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil, a Aliança de Batistas do Brasil e a Comissão Justiça e Paz da CNBB. Mais: ministros do STF sinalizam que, sem arranhar a harmonia entre os poderes, é vital coibir extravagâncias institucionais: “é necessário conter excessos do presidente”, diz Gilmar Mendes. Se falar em impeachment era implausível, deixou de sê-lo. Luís Roberto Barroso vê indícios de crime de responsabilidade.
O bloco conservador-liberal, que apoiou Bolsonaro nas eleições de 2018, não mais o quer; a direita abandonou-o porque ele passou para a extrema direita como genocida; a esquerda, essa nunca o quis. Como genialmente declarou o professor Rafael Mafei, da Faculdade de Direito da USP, “seria possível fazer um bingo da Lei 1.079 com cada crime de responsabilidade praticado”. Lideranças religiosas, empresariais, sindicais, estudantis, jurídicas, movimentos sociais, partidos políticos, todos, com o grito de impeachment embasado na péssima gestão da pandemia, pressionam a Câmara dos Deputados para que faça andar os pedidos de impeachment (há sessenta e dois). “É um fenômeno novo
essa união de correntes políticas muito diferentes”, diz o historiador Marco Antonio Villa. “Até recentemente estavam em polos opostos e agora mostram um ponto de unidade que é o impeachment de Bolsonaro”.
“Empresários bolsonaristas e não bolsonaristas estão mandando recados de que o presidente precisa mudar”, diz um interlocutor do Planalto. A partir da segunda-feira 1, com as eleições para as presidências da Câmara e do Senado, a temperatura do termômetro que indica o grau do Bolsonaro-fica-ou-Bolsonaro-cai poderá ser melhor aferida: ele tem os seus candidatos nas duas Casas. Se perder na Câmara o seu reinado poderá começar a apodrecer, embora o deputado Baleia Rossi, concorrente do bolsonarista Arthur Lira, venha tergiversando sobre o assunto. Mas uma coisa é ele não querer, outra coisa, como ensina a teoria do filósofo italiano Antonio Gramsci, é Baleia Rossi não conseguir segurar a pressão popular (a desaprovação do governo Bolsonaro, segundo o Datafolha, caiu de 40% para 32%). A pressão virá em blocos, e essa é justamente a proposição gramsciana não ouvida na Itália para barrar o fascismo.
“Pena de morte”
Em documento conjunto com o movimento Vem Pra Rua e o Movimento Brasil Livre, João Amoêdo, fundador do partido Novo, assinala: “O presidente coloca em risco a vida de brasileiros. “Precisamos mostrar aos deputados que ainda não apoiam o impeachment que chegou a hora de fazê-lo, porque existe clima político”. A rigor, o clima político cobrirá o País com o crescimento das mobilizações. Ocorre, no entanto, que, além delas, é necessária a engrenagem parlamentar. Se Arthur Lira ganhar a função hoje exercida por Rodrigo Maia, Bolsonaro não cairá mas virará refém. Com o seu destempero e “as demonstrações de comportamentos
anormais”, como define o jurista Miguel Reale Júnior, basta Bolsonaro desagradar Lira e, quem sabe, será mandado para casa. A opinião de Reale Júnior, um dos autores do pedido de impeachment de Dilma, é a seguinte: “Trata-se de um remédio para casos graves, e estamos diante de um caso grave. Outro caminho é o processo criminal, porque há uma coletânea de crimes contra a saúde. O presidente tem de passar por exame de sanidade mental e ser interditado”. A economista Kathryn Hochstetler, em sua obra “Repensando o presidencialismo: contestações e quedas presidenciais na América do Sul”, lista a falta de apoio parlamentar como uma das principais causas que levam ao impeachment; a
outra é a mobilização da sociedade civil. Bolsonaro buscou esse apoio no que há de mais fisiológico na Câmara e no Senado, e a conta política que lhe apresentarão será alta, a começar pela troca de militares por civis no Planalto. Quanto às mobilizações, elas tomaram quase cinquenta cidades no final da semana passada e mostraram, nos bastidores, que impensáveis alianças — ainda que nesse momento se revelem como meros flertes — se concretizarão.
É difícil imaginar que o movimento Acredite, integrado, entre outros, pelos deputados federais Felipe Rigoni e Tabata Amaral, iria convidar o direitista Movimento Brasil Livre para saírem juntos nos protestos. Mas houve o convite. A porta-voz do MBL, Adelaide Amaral, explicou que a organização que ela representa tem muitos comerciários que preferem ir às manifestações aos domingos e o Acredite se programara para o sábado. Só por isso não houve a união, mas as portas estão abertas. Já o grupo esquerdista Frente Brasil Sem Medo, que além do impeachment reivindica uma agenda econômica não liberal, admite que há um esforço de todas as partes para que se forme uma
frente ampla. Seria a repetição das Diretas Já, que, em 1984, reuniu em São Paulo, no mesmo comício, Lula, Leonel Brizola, Tancredo Neves, Fernando Henrique Cardoso e Ulisses Guimarães, mobilizando centenas de milhares de pessoas. Na verdade, impossível não é, porque existe uma palavra de ordem suprapartidária que une todos contra o genocídio bolsonarista: a salvação da vida humana.
O cientista político alemão Jan-Werner Müller, autor do clássico “O que é populismo”, ensina que não basta ser contrário a um presidente para tirá-lo do cargo, pois é necessário um projeto político que o substitua ou uma emergência que urja ser sanada: “É
preciso acenar com uma visão positiva que possa aliviar os problemas reais das pessoas”. Bolsonaro cometeu uma infinidade de crimes de responsabilidade, mas não foram eles o “aceno” suficiente para levantar a sociedade civil. Agora a situação é diversa, ela toca na pele de cada cidadão, é questão de saúde ou doença, de vida ou de morte por vírus. Fique-se com a declaração do professor do Insper Ivar Hartmann, um dos integrantes do grupo de brasileiros ex-alunos de Harvard que são signatários de uma carta pelo impeachment. Segundo ele, “o presidente violou o direito à saúde da população de tal maneira que caracteriza crime de responsabilidade”. A conclusão é nossa: o medo de morrer, conforme a referência de Müller, é um “problema real”. E capaz, portanto, de mobilizar cada brasileiro na luta pelo impeachment daquele que se valeu do vírus para decretar no País uma absurda e criminosa pena de morte.
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