Ditadura nunca mais, nem tampouco esquecimento
Ricardo Noblat
atualizado
Não punir os que conspiraram e planejaram o golpe abortado de dezembro de 2022 por falta de apoio militar e civil é manter aberta a cancela para que transitem livremente os que venham a desejar no futuro dar um golpe bem-sucedido. E o futuro pode estar logo ali, nunca se sabe.
No próximo dia 31 de março completa 60 anos do golpe que instalou no Brasil uma ditadura militar que, à época, se imaginou que duraria no máximo dois anos. O general Castelo Branco foi eleito presidente por um Congresso manietado para salvar o país do comunismo.
O vice João Goulart, legitimamente eleito, que sucedera ao presidente Jânio Quadros eleito em 1960, fugira para o exterior, escapando de ser preso. Jânio renunciou com a pretensão de voltar de imediato nos braços do povo, e com um Congresso de joelhos.
A missão inicial de Castelo Branco era restabelecer a ordem no país, limpá-lo dos chamados pelos militares de “subversivos”, ou seja, qualquer um que assim fosse considerado, e devolver o poder aos civis em eleições que seriam realizadas em 1966.
Havia candidatos declarados e dispostos a disputá-las. O ex-presidente Juscelino Kubistchek, o criador de Brasília, era um deles, pelo PSD e o PTB, partidos que apoiaram Getúlio Vargas. O outro, pela UDN, era Carlos Lacerda, governador da Guanabara.
JK era um democrata que anistiou todos os militares que se rebelaram contra seu governo; Lacerda, um golpista raiz, que disse sobre Getúlio: “Não pode ser candidato. Se for, não pode ser eleito. Se eleito, não pode tomar posse. Se tomar posse, não pode governar.”
Uma vez Flamengo, sempre Flamengo. Quero dizer: uma vez no poder, ninguém quer sair, só sai quando não tem jeito. Getúlio não quis sair desde que lá chegou por meio de um golpe militar em 1930, dando outro em 1937, sendo derrubado por outro em 1945, e ao poder voltando em 1950.
Voltou eleito pelo povo para quatro anos depois matar-se com um tiro no coração porque os militares que o depuseram em 1945 tentaram depô-lo mais uma vez, forçando-o a renunciar. O golpe de 1954 foi abortado pela sua morte. Ocorreria só 10 anos mais tarde.
No país cuja história é picotada por tantos golpes, o de 64 não poderia durar apenas dois anos. Castelo Branco foi sucedido na presidência por mais quatro generais. E assim se passaram 21 tenebrosos anos de torturas e mortes de desafetos do regime.
O último general-presidente, João Baptista de Oliveira Figueiredo, filho de um general tido como legalista, saiu do Palácio do Planalto por uma porta lateral para não transferir a faixa ao seu sucessor, José Sarney, vice de Tancredo Neves, que morreria sem tomar posse.
Figueiredo herdara a presidência do general Ernesto Geisel, que o escolheu. Assumira prometendo fazer do Brasil uma democracia, e fez. Ao deixar o cargo, e um legado de frases famosas (“Prefiro cheiro de cavalo a cheiro de povo”), pediu para ser esquecido. E foi.
Ditadura nunca mais, mas tampouco esquecimento. Estamos de acordo? Se você gosta de futebol e acompanha jogos, já deve ter lido a frase escrita no alto do portão 8 do Estádio Nacional de Santiago do Chile. Ela diz:
“Un pueblo sin memoria es un pueblo sin futuro”. (Um povo sem memória é um povo sem futuro.)
Aplica-se à história de qualquer país, mas foi escrita para que nunca sejam esquecidos os 17 anos da ditadura militar que teve início em setembro de 1973 com o ataque aéreo ao Palácio de La Modena. Ali despachava o presidente socialista Salvador Allende.
Ele resistiu armado à sua derrubada e depois matou-se, como Getúlio. Uma junta militar, liderada pelo general Augusto Pinochet, tocou o terror no Chile com a ajuda da ditadura brasileira em dinheiro e técnicas de tortura, execução e desaparecimento de corpos.
Dar como página virada o golpe de dezembro de 2022 só porque ele acabou abortado em nada contribui para fortalecer entre nós uma democracia que ainda claudica. Homicídio é crime, tentativa de homicídio também. Dá-se o mesmo com tentativa de golpe.
Bolsonaro e seus comparsas clamam para que se passe uma borracha no passado só para se livrar da responsabilidade dos seus erros. Não clamariam se o que tentaram outro dia tivesse sido um êxito. A essa altura, a borrachada estaria correndo solta país adentro.
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