Vitórias de Haddad: R$ 150 bi a mais de arrecadação e a menos de sonegação

 

Reinaldo Azevedo - 


Fernando Haddad, ministro da Fazenda, obteve duas vitórias importantes. Uma delas, por enquanto, é técnica e intelectual, mas com possíveis desdobramentos. Outra já é uma coisa julgada no STJ e só não terá efeito imediato porque André Mendonça, ministro do STF, resolveu abusar da heterodoxia e conceder uma liminar para tornar, por ora, sem efeito, decisão tomada na outra corte superior. Comecemos pelo segundo caso. Empresas usam incentivos fiscais dos Estados para não recolher o que devem à União em Imposto de Renda de Pessoa Jurídica (IRPJ) e Contribuição Social Sobre Lucro Líquido (CSLL).

Há uma matéria já pacificada na Justiça, e ninguém vai mexer com o que está aí. A que me refiro? Um Estado qualquer pode conceder uma das várias modalidades de incentivo via ICMS para empresas sob o compromisso de que elas vão investir. Tomemos uma base de R$ 100, com alíquota de 14%. A empresa declara R$ 14 como despesa com o imposto, mas pode, efetivamente, recolher apenas R$ 10. Houve aí um ganho de R$ 4 sobre o qual deveriam incidir os impostos federais. Não incidirão se o dinheiro for direcionado para investimento.

Uma patranha foi introduzida na Lei Complementar 160, de 2017. Tomemos o exemplo acima. A empresa declara os mesmos R$ 14, paga R$ 10 e fica com uma sobra de R$ 4. Ocorre que, nesse caso — e é o que foi julgado no STJ — a grana está indo para o caixa, servindo a custeio. E, mesmo assim, não estão incidindo os impostos federais. Sabem o nome dessa prática? Sonegação. Usa-se o imposto estadual para deixar de arrecadar os federais.

Os exemplos acima são modestos, para facilitar o entendimento. O governo federal deixa de arrecadar, estima-se, R$ 90 bilhões, com reflexos também em Estados e municípios, que ficariam com R$ 20 bilhões dessa bolada.

E foi isso o que se julgou no STJ. Por 9 a zero, a 1º Seção do tribunal considerou ilegal o não recolhimento dos tributos quando aquela parcela que a empresa embolsa não se transforma em investimento. Assim, o tribunal põe fim a uma aberração. Ou quase.

Em decisão absolutamente surpreendente e exótica, André Mendonça, ministro do Supremo, atendendo ao pedido de uma federação empresarial, tentou impedir a votação por intermédio de uma liminar. Ou, decidiu, caso o julgamento tivesse começado ou estivesse concluído, seu efeito estaria suspenso.

Mendonça alegou que há matéria semelhante em julgamento no Supremo. Ocorre que não há. O tribunal trata da incidência de créditos tributários de ICMS na base de cálculo do PIS/Cofins, outro tributo federal. Misturou alhos com bugalhos.

Os demais ministros do STF vão se manifestar no plenário virtual entre os dias 5 e 12. Se a maioria não endossar a liminar, fica valendo a decisão do STJ. Espera-se. Para o bem do país.

CARF
A outra vitória de Haddad veio na forma de uma carta enviada por Grace Perez-Navarro, diretora do Centro de Política e Administração Tributária da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Paulo Guedes, quando ministro da Economia, fez alarde sobre a possível entrada no país no grupo.

Pois é...

Perez-Navarro ficou, nota-se, escandalizada — e, pois, a OCDE — ao saber como passou a funcionar por aqui o Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais). São 130 membros, divididos numa estrutura complexa, segundo áreas de arrecadação, mas importa dizer que as decisões são tomadas por grupos paritários, formados por "contribuintes" e funcionários da Receita.

Até 2020, o governo tinha o chamado "voto de qualidade". No caso de um empate, era a União a decidir. Não mais. Resultado: os "contribuintes" — representantes de federações e confederações empresariais — passaram a ganhar todas. Estima-se uma perda de arrecadação da ordem de R$ 60 bilhões por ano.

O governo tentou, via Medida Provisória, retomar o voto de qualidade. Fez-se um escarcéu em áreas do Congresso, do empresariado e da imprensa. Houve quem falasse em "insegurança jurídica". Nada! O pacto em favor da sonegação no país é forte. O governo vai encaminhar um projeto de lei em lugar da MP e cedeu a parte da pressão: retoma o voto de qualidade, mas deixa de cobrar multa e correção sobre o imposto devido — o que já é uma vergonha.

Ah, sim: há outra graça no Carf. Se o governo perde a votação, está impedido de recorrer; se a empresa perde, pode apelar à Justiça.

ESCULHAMBAÇÃO
Grace deixou claro que isso é uma esculhambação.

Notou que não há, no mundo, nada parecido com o que se inventou por aqui e que, mundo afora, "as revisões [tributárias] são realizadas por funcionários do governo da administração tributária ou do Ministério das Finanças", não por representantes do setor privado. Observou que as mudanças de 2020 fizeram com que o órgão decida automaticamente a favor das empresas.

Também achou muito peculiar que apenas um lado possa recorrer à Justiça quando derrotado. Escreve a respeito:
"Isso parece inapropriado, porque, se a decisão resultar de um empate, indica que há algumas questões legais desafiadoras que provavelmente merecem ser mais esclarecidas e resolvidas por meio de um processo judicial independente".

Mas não existiriam, aqui e ali, mundo afora, representantes do setor privado nesses conselhos? Destacando que as decisões sempre são de órgão oficial, ela observa:
"Onde os representantes do setor privado estão envolvidos na revisão administrativa ou judicial, o processo é, em última análise, supervisionado por juízes profissionais de carreira, incluindo os juízes do Supremo Tribunal que terão a palavra final".

E, claro, recomenda a volta do voto de qualidade, observando que "isso não terá um impacto negativo sobre os direitos dos contribuintes porque eles ainda terão seu recurso à revisão judicial independente".

Com o Carf que Paulo Guedes nos legou, a entrada do país na OCDE é uma quimera.

CONCLUO
Pouco se fala, muito especialmente na imprensa, sobre essas duas formas de institucionalizar a sonegação. Observem que, sem mexer em alíquota, estamos falando de uma possibilidade de aumento da arrecadação de R$ 150 bilhões.

Os nossos liberais de anteontem não gostam desses assuntos. Com "independência" muito peculiar, são fascinados por cortes de gastos, embora raramente digam onde poderiam ser aplicados.

"Ah, o arcabouço apresentado centra-se demais na receita...", reclamaram. Como se vê, há saídas.

Que tal uma frente ampla pela decência arrecadatória, hein? Espertalhões deixam de fingir que estão investindo o que sonegam, e um conselho de recursos fiscais deixa de ser um cartório de... sonegadores.

A patranha com o ICMS e o Carf são duas evidências de que as nossas elites nem são assim tão fissuradas pela privatização de estatais. Elas preferem a privatização do país.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL 

https://noticias.uol.com.br/colunas/reinaldo-azevedo/2023/04/27/vitorias-de-haddad-r-150-bi-a-mais-de-arrecadacao-e-a-menos-de-sonegacao.htm

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