'É para perder a fé': romeiros criticam uso político da festa da padroeira


Os irmãos Luan e Lucas Ribeiro fazem peregrinação até Santuário Nacional ao lado de amigo que fizeram na caminhada - Marcelo Justo/UOL
Os irmãos Luan e Lucas Ribeiro fazem peregrinação até Santuário Nacional ao lado de amigo que fizeram na caminhada Imagem: Marcelo Justo/UOL

Rodrigo Bertolotto

Do TAB, em Aparecida (SP)

12/10/2022 04h01 

"Para entender as necessidades do povo, os políticos teriam que caminhar com a gente. 

Ver como as pessoas sofrem e pedem tão pouco. 

Mas eles chegam de helicóptero na basílica só para pedir voto. 

É para perder a fé na política de uma vez por todas."

 Francisco Silva, 51, está em sua 22ª romaria, percorrendo a pé 170 quilômetros desde Itaquera, zona leste de São Paulo, até o santuário de Nossa Senhora Aparecida.

Ele não fala em quem votou, mas diz que gostaria de encontrar Jair Bolsonaro, que confirmou presença para hoje à tarde, com Tarcísio de Freitas (Republicanos), no dia da padroeira do Brasil.

 "Queria só cinco minutos de conversa com o presidente para falar de espiritualidade e políticas públicas."

Treinador de atletismo, Francisco faz a peregrinação com outros 270 integrantes de sua paróquia, incluindo seu filho, Kauê, que carrega uma cruz de madeira nos ombros durante todo o percurso.

Onde Kauê para, outros romeiros o cercam e escrevem à caneta pedidos e orações na cruz. Aos 27 anos, ele faz essa via crúcis desde 2015 e está em sua 14ª romaria. "Comecei por uma promessa para que meu tio caminhoneiro saísse do coma após um acidente. Agora só paro quando conseguir comprar um sítio com pesqueiro e colocar essa cruz na entrada. Mas isso vai levar mais uns dez anos", conta.

Entre os peregrinos à beira da BR-116 que rezam com Kauê em uma parada na cidade de Pindamonhangaba estão os irmãos Lucas e Luan Ribeiro, que saíram de Osasco, na Grande São Paulo.

Usando chinelo, Lucas vai cambaleante pelo acostamento com curativos no pé que escondem bolhas nos dedos e calcanhares rachados. Na camiseta do motoboy de 33 anos, a foto de sua esposa, que luta contra um câncer. "Peço pela cura dela, e agradeço por toda a família ter sobrevivido à pandemia", revela.

Kauê Silva carrega cruz em romaria para Aparecida ao lado do pai, Francisco, em acostamento da rodovia Dutra - Marcelo Justo/UOL - Marcelo Justo/UOL
Kauê Silva carrega cruz em romaria para Aparecida ao lado do pai, Francisco, em acostamento da rodovia Dutra Imagem: Marcelo Justo/UOL

Para Lucas, porém, o motivo principal é o aprendizado espiritual. "Aqui tem pobre e rico caminhando junto, todo mundo se ajudando. Apesar das feridas no corpo, a gente sente um carinho e um conforto imensos que mostram que não basta força física: tem que ter muita fé para aguentar essa vida. Caminho só olhando para o chão e pensando", desabafa.

Em uma pausa num posto em Itaquaquecetuba conheceram João Pontes, pessoa em situação de rua, fizeram amizade e o adotaram como companheiro de caminhada. Lucas diz que votou em Lula no primeiro turno, vai repetir a escolha no segundo e critica a presença de Bolsonaro no santuário. "Acho sacanagem. Não é o momento de fazer campanha."

Oportunistas são os outros

Até apoiadores do atual presidente reprovam a já tradicional presença de presidenciáveis atrás da maioria do eleitorado durante outubro, mês do aniversário da santa. "Há muito oportunismo nessas horas", diz o radialista Paulo Carvalho, 51, que foi à Aparecida de carro desde Teresópolis (RJ).

Paulo, contudo, perdoa seu candidato favorito desse pecado. "Ele é católico e já veio aqui várias vezes", justifica assim a nova presença de Bolsonaro pelo santuário. "Entre minhas preces, estou rezando para ele vencer, porque, como cristão, não quero que o comunismo volte. Até agora está funcionando", professa sua fé.

romaria aparecida - Marcelo Justo/UOL - Marcelo Justo/UOL
O radialista Paulo Carvalho diz que está rezando em Aparecida pela reeleição de Jair Bolsonaro Imagem: Marcelo Justo/UOL

A empresária paranaense Angélica Proença, 32, faz a romaria com a bandeira brasileira como capa, amarrando no pescoço e cobrindo suas costas. Ao lado do pai, Luís, 67, ela caminhou do município de Arujá (SP) até a basílica, mas não vai ver seu político preferido por lá. "Essa bandeira é por Nossa Senhora e pelo Bolsonaro, mas tenho que estar em Curitiba na quarta mesmo e não vou acompanhar a visita dele", confessa.

Ela faz romaria há seis anos e sofre com as bolhas e assaduras ganhas durante o itinerário. Já o pai, de botina e chapéu de vaqueiro, diz não ter problemas no trajeto. "Eu recebi muitas bênçãos e superei momentos delicados na vida. Até minha filha quase morreu quando era pequena. Então é uma satisfação poder mostrar gratidão", explica seu Luís.

Andar com fé

Com uma latinha de energético em uma mão e um pedaço de carne na outra, Alzira Soares, 55, faz uma pausa em um gramado à margem da Dutra em Taubaté. Ela está vindo do município de Igaratá (SP) para cumprir pela 13ª vez a peregrinação de 130 quilômetros.

Uns parentes caminham com ela, outros vão de carro levando os mantimentos para a aventura mística. "A primeira vez foi porque fiquei de cama 21 dias após retirar um tumor. Agora faço só para agradecer. Nem peço nada para minha mãezinha: o que quiser, a santinha vai saber a hora e o lugar de me dar", diz a devota.

Alzira persiste, apesar de muitos em sua cidade terem desistido depois que duas vizinhas foram atropeladas na romaria do ano passado. Uma morreu, e outra ficou seriamente ferida quando passavam por Caçapava (SP).

Ela revela que escolheu Simone Tebet (MDB) na votação do dia 2, mas que vai anular seu voto no segundo turno. "Só peço a Deus que ilumine o povo e escolha o menos pior", diz. E se queixa da presença dos políticos em Aparecida. "É puro interesse pessoal. Eles só aparecem quando precisam. É falta de respeito com quem está lá pelo sentimento religioso."

Caminho para Aparecida

Alzira Soares (esq.) faz pausa em caminhada para Aparecida e almoça com seus familiares que a acompanha de carro - Marcelo Justo/UOL
1 / 9

Alzira Soares (esq.) faz pausa em caminhada para Aparecida e almoça com seus familiares que a acompanha de carro

Marcelo Justo/UOL
Angélica Proença e seu pai, Luís, vieram de Curitiba e iniciaram em Arujá (SP) caminhada até Aparecida - Marcelo Justo/UOL
2 / 9

Angélica Proença e seu pai, Luís, vieram de Curitiba e iniciaram em Arujá (SP) caminhada até Aparecida

Marcelo Justo/UOL
Pedro Policarpo, 80, carrega imagem de Nossa Senhora em sua quinta romaria para Aparecida - Marcelo Justo/UOL

Peregrinos caminham pelo acostamento da rodovia Dutra na altura de Taubaté (SP)

Marcelo Justo/UOL
Fiéis rezam em capela de velas na basílica de Aparecida em véspera do dia de Nossa Senhora Aparecida - Marcelo Justo/UOL
9 / 9

Fiéis rezam em capela de velas na basílica de Aparecida em véspera do dia de Nossa Senhora Aparecida

Marcelo Justo/UOL

Carregando no pescoço um relicário de isopor, Pedro Policarpo, 80, faz há cinco anos o trajeto de Jacareí (SP) até a basílica nacional. Quando passa pelos pontos de apoio da estrada, recebe aplausos, orações e elogios de outros católicos. "Eu só peço paz nas famílias, porque estão muito desunidas. Tem muito marido matando mulher. Temos que desarmar as pessoas porque um está destruindo o outro", roga o agricultor aposentado.

Seu Pedro diz que é filiado ao PDT, mas que votou em Lula no lugar de Ciro no primeiro turno. E não gosta de misturar política com religião. "Quando candidato entra na igreja, até os santos viram de costas de tanto pecado que essa gente tem", brinca.

Caminho da luz

Todo outubro tem romaria para Aparecida. Mas de quatro em quatro anos surgem por lá nesse mês quem está atrás de um cargo majoritário. José Serra, Geraldo Alckmin, Aécio Neves, Dilma Rousseff, Lula, Bolsonaro e muitos outros candidatos fizeram aparições em períodos eleitorais no santuário no interior paulista.

Mas poucos deles encaram a peregrinação a pé. Uma exceção é Márcio Nakashima (PDT), irmão da advogada Mércia Nakashima, que foi assassinada pelo ex-namorado em 2010. A tragédia familiar fez Márcio tentar e conseguir uma vaga na Assembleia Legislativa em 2018, sendo reeleito este ano. Há cinco anos ele faz o percurso com um grupo de Guarulhos.

romaria aparecida - Marcelo Justo/UOL - Marcelo Justo/UOL
Entidades católicas montaram postos de apoio aos peregrinos à margem da rodovia Dutra Imagem: Marcelo Justo/UOL

Segundo as estimativas dos organizadores, a romaria deste ano deve ultrapassar a marca de 60 mil pessoas, e pode duplicar o número de 2021 (32 mil). Mesmo durante a pandemia em 2020, 16 mil percorrem os caminhos até Aparecida. Esse aumento nas levas católicas exige uma estrutura maior.

Por seu lado, a PRF (Polícia Rodoviária Federal) colocou cones no acostamento da Dutra, avisos luminosos pedindo atenção aos motoristas e disponibilizou um aplicativo para orientar os romeiros. Grupos católicos espalharam dezenas de pontos de apoio, disponibilizando água, frutas e biscoitos, além de capas de chuva e serviço de enfermagem e pedicure para os pés estropiados na jornada.

Além da Dutra, que é o caminho mais plano e reto, porém mais perigoso (em 2021, quatro beatos morreram atropelados), outros caminhos foram criados para que os cristãos tenham uma viagem mais tranquila. Um deles foi chamado de "Rota da Luz" e passa por estradas vicinais de Mogi das Cruzes até perto de Aparecida. Outro roteiro é o "Caminho da Fé", que começa de vários pontos, encontra-se em Águas da Prata (SP) e desce a serra da Mantiqueira.

Esses trajetos possuem mais curvas e subidas que pela rodovia que liga São Paulo ao Rio, uma das mais movimentadas do país. À beira da Dutra, o barulho e a poluição do trânsito é mais um suplício para os caminhantes, fora os buzinaços dos caminhões.

Para encarar a prova religiosa e física, os peregrinos precisam tanto de bons calçados quanto chapéus para proteger do sol e capas para a chuva. Muitos usam bastões, que podem ser desde os mais esportivos até cajados que parecem ter saído de alguma representação bíblica.

Além da proteção divina dada por crucifixos e terços, um item essencial para sobreviver à demonstração de fé são coletes com faixas reflexivas e as lanternas — afinal, a noite pode cair antes de chegar ao local de pernoite e os veículos passam velozes bem ao lado.

Ashttps://tab.uol.com.br/noticias/redacao/2022/10/12/e-para-perder-a-fe-romeiros-criticam-uso-politico-da-festa-da-padroeira.htm 

Postagens mais visitadas deste blog