Jerônimo Teixeira: “O Jesus armado de Bolsonaro é uma blasfêmia”


| O Antagonista

“Um Cristo que espalhasse balas a esmo pela Judeia, feito policial na Vila Cruzeiro, estaria em contradição com o espírito dos evangelhos", diz o escritor na Crusoé

Em artigo na Crusoé, o escritor Jerônimo Teixeira diz que o “Jesus armado” usado por Jair Bolsonaro para defender o armamentismo é uma blasfêmia.

 Em conversa com um apoiador recentemente, o presidente afirmou que Jesus Cristo “não comprou pistola porque não tinha” na época. 

Um Cristo que espalhasse balas a esmo pela Judeia, feito policial na Vila Cruzeiro, estaria em contradição com o espírito dos evangelhos. Tampouco seus discípulos aparecem decapitando infiéis nos Atos dos Apóstolos, livro que foi escrito pelo mesmo autor do evangelho de Lucas”, diz. 

“A sugestão de que Jesus Cristo teria se defendido se pusesse as mãos em uma AR-15 não é apenas uma idiotice: é também uma blasfêmia (…).

A direita que recorre ao ‘venda a capa e compre uma espada’ para amparar o armamentismo não é diferente da esquerda que cita o ‘eu vim trazer a espada’ para sugerir que Jesus pregava a revolução: ambas descontextualizam e deformam passagens bíblicas para que sirvam ao proselitismo mesquinho. 

Não é preciso ser cristão para constatar que isso é coisa de mau cristão


Leia aqui a íntegra do artigo 


O "Jesus armado" de Bolsonaro é uma blasfêmia - Crusoé


Fui cristão até os 16 anos. Já antes de eu entrar na escola, minha mãe, descendente de alemães protestantes, me ensinou o Pai Nosso e uma oração em alemão que eu adorava repetir mesmo sem entender uma só palavra. Só não fui protestante porque eram tempos patriarcais: meu pai era católico, e portanto fui criado católico. Membro de um movimento jovem da igreja, até servi galeto em uma quermesse promovida pela paróquia de Estância Velha, Rio Grande do Sul. No Segundo Grau (atual Ensino Médio), comecei a tomar contato com os previsíveis chavões de esquerda (ópio do povo etc.) e me afastei do altar. Detalhe que confesso com algum constrangimento: abandonei a fé de vez quando li A Náusea, de Sartre. Em idade madura, larguei também a cachaça existencialista, que dá uma ressaca dos diabos. Mas a crença em Deus já estava definitivamente perdida. 

De tudo fica um pouco: a religião simples e sóbria na qual fui educado deixou marcas na minha sensibilidade. A missa católica e o culto evangélico tradicional não guardam qualquer significado para mim, mas entendo e respeito o fiel que encontra transcendência nesses ritos. De outro lado, tenho aversão a quem manifesta sua crença de forma histriônica. Não consegui levar a sério o espasmo de glossolalia com que Michelle Bolsonaro comemorou, no ano passado, a confirmação de André “Terrivelmente Evangélico” Mendonça como ministro do STF. Dirão que demonstro intolerância ou preconceito contra os evangélicos? Ora, nem estou falando de uma cerimônia religiosa: foi apenas a celebração de uma vulgar vitória política. A Deus o que é de Deus, a César o que é de César.

Mais recentemente, o marido de Michelle – esse César pueril que brinca de cruzar o Rubicão quando passeia de moto com seus parças – recebeu um grupo de religiosos no Palácio do Planalto para discutir altas questões teológicas. O registro do encontro em vídeo mostra Jair Bolsonaro postulando que segurança pública depende do cidadão armado. Foi a deixa para que um dos presentes demonstrasse seu conhecimento da Bíblia: “Presidente, isso é recomendação do próprio Jesus. Antes de ser crucificado, ele mandou: ‘Quem não tem espada, venda a vestimenta e compre uma'”. O Espírito Santo manifestou-se então pela boca do Messias Bolsonaro, que pronunciou essas palavras de amor e luz: “Foi o Pedro… ‘Vendam suas capas’. Ele não comprou pistola porque não tinha na época”. 

A fala é meio desconjuntada (a acuidade verbal de Carlucho parece ter sido herdada do pai), mas supõe-se que foi Jesus, e não Pedro, quem só não comprou uma Smith & Wesson por que veio à Terra cedo demais. O presidente talvez quisesse dizer que Jesus recomendou a compra de uma espada a Pedro, o que não está de todo errado: o ensinamento era dirigida aos apóstolos presentes na Santa Ceia, entre os quais estava Pedro. Bolsonaro já invocara a mesma passagem bíblica para referendar a pregação armamentista na campanha eleitoral de 2018, e também confundiu-se: atribuiu ao “livro de Paulo” a frase que na verdade está no capítulo 22 do evangelho de Lucas. Naquele ano, falando a O Globo, o então candidato já dizia que Jesus teria usado armas de fogo se elas existissem em seu tempo.   

Eis a passagem pertinente de Lucas, na tradução do acadêmico português Frederico Lourenço: “’Quando vos enviei sem bolsa, sem alforje, sem sandálias, sentistes falta de alguma coisa?’ Eles [os doze apóstolos] disseram: ‘De nada’. Ele disse-lhes: ‘Mas agora quem tem bolsa que a tome, assim como o alforje, e quem não tem, venda a capa e compre uma espada”. Em seguida, os discípulos apresentaram duas espadas a Jesus, que respondeu: “Já é suficiente”.

Deduz-se desse diálogo, presente apenas no livro de Lucas, que Jesus foi um deus armado? Está correto o Concílio do Planalto quando sugere que o armamentismo é um princípio fundamental do cristianismo? O crente que tiver um terno Armani no armário deve vendê-lo para comprar uma Glock? 

Nada é tão simples assim. A leitura literal da palavra bíblica é quase sempre problemática. Jesus talvez só falasse em espadas para anunciar os duros tempos de perseguição que viriam adiante. A espada pode ser um exagero retórico empregado para compor o quadro do horror futuro. E como em outras passagens do evangelho, há aqui um intrincado jogo de referências ao Antigo Testamento. Em certo momento, Jesus cita um versículo do livro de Isaías que parecia anunciar que o Messias, quando viesse à Terra, seria considerado um transgressor da lei. Transgressores costumam andar armados.

Em qualquer hipótese, é tranquilo afirmar que Jesus não usaria uma revólver ou fuzil para se defender de seus perseguidores. Um Cristo que espalhasse balas a esmo pela Judeia, feito policial na Vila Cruzeiro, estaria em contradição com o espírito dos evangelhos. Tampouco seus discípulos aparecem decapitando infiéis nos Atos dos Apóstolos, livro que foi escrito pelo mesmo autor do evangelho de Lucas. 

Em seu sentido literal, o conselho sobre espadas sai esvaziado poucos parágrafos adiante, quando se narra a prisão de Jesus. Judas dá o beijo da traição, e os demais discípulos perguntam se devem usar a espada para defender o mestre. Antes que Jesus possa responder, um discípulo afoito – que permanece anônimo nos três evangelhos sinópticos e só é identificado como Pedro no evangelho de João – corta a orelha direita do escravo do sumo sacerdote. Jesus então pacifica os ânimos: toca na orelha ferida, que sai curada. Está claro que nunca fora sua intenção resistir pela força. Pois o Cristo que não fosse preso tampouco seria crucificado, e nem ressuscitaria no terceiro dia. Perder-se-ia assim o drama da salvação, sem o qual não pode existir a fé cristã. A sugestão de que Jesus Cristo teria se defendido se pusesse as mãos em uma AR-15 não é apenas uma idiotice: é também uma blasfêmia. 

O pequeno milagre da orelha aparece apenas em Lucas. Em Mateus e João, porém, Jesus admoesta Pedro por seu ato violento. A reprimenda mais expressiva está em Mateus: “Todos os que tomarem uma espada, na espada morrerão”. Eis aí uma frase de Jesus que Bolsonaro jamais lerá de maneira literal. A direita que recorre ao “venda a capa e compre uma espada” para amparar o armamentismo não é diferente da esquerda que cita o “eu vim trazer a espada” para sugerir que Jesus pregava a revolução: ambas descontextualizam e deformam passagens bíblicas para que sirvam ao proselitismo mesquinho. Não é preciso ser cristão para constatar que isso é coisa de mau cristão. 

Quando sugere trocar capas por espadas, Jesus fala indiretamente da perseguição aos cristãos que ocorreria no futuro próximo. É por isso me sinto obrigado a falar das tribulações do pastor Milton Ribeiro. Eu ainda estava na metade do texto acima quando chegou a noticia de que Ribeiro havia sido preso pela Polícia Federal por suspeita de corrupção e tráfico de influência ao tempo em que comandava o Ministério da Educação. A reação imediata de Bolsonaro foi se distanciar do ex-ministro, alegando que não pode saber de tudo o que acontece no governo. Depois da libertação de Ribeiro, na quinta-feira 23, o presidente voltou a defendê-lo, mas com uma pequena dose cautela. Em março, o presidente havia dito que botava “a cara no fogo” pela correção do seu ministro. Agora, ele diz que a declaração foi exagerada: botaria apenas a mão no fogo. 


No evangelho de Mateus, Jesus antecipa o que dirá, no Juízo Final, àqueles que serão condenados ao fogo eterno: “Eu tive fome e não me destes de comer, tive sede e não me destes de beber, eu era estrangeiro e não me acolhestes, estava nu e não me vestistes, estava doente e na prisão e não me visitastes. (…) Quando não fizestes a um destes mais insignificantes dos meus irmãos, a mim não o fizestes”. Ao presidente que gosta de tomar a palavra de Jesus ao pé da letra, fica o aviso: se o pastor Milton Ribeiro voltar a ser preso, é melhor visitá-lo no cárcere. 

https://crusoe.uol.com.br/diario/o-jesus-armado-de-bolsonaro-e-uma-blasfemia/

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