O poder irrecorrível de Rosa Weber

 Diego Escosteguy

diego@obastidor.com.br

Publicada em 06/04/2022 às 18:00



Foto: Pedro Ladeira/Folhapress

Graças ao caso Covaxin, está com a ministra Rosa Weber a decisão de iluminar - ou não - um dos fatos mais relevantes do país hoje: o poder (quase) absoluto, por irrecorrível, do procurador-Geral da República em assuntos penais. Dele decorre, em parte, a blindagem institucional do presidente Jair Bolsonaro.


Por atribuição constitucional, cabe ao chefe do MPF decidir, após investigação, se o presidente da República cometeu um crime ou não. Se o PGR avaliar que o presidente cometeu um crime, tem o dever de oferecer denúncia contra o presidente. Se opinar que não houve crime, tem o dever de arquivar a investigação - e o Supremo, em tese, nada pode fazer quanto a isso. A primazia do Ministério Público numa investigação penal é um dos alicerces da Constituição de 88. Embasa o que se chama de sistema acusatório, no qual o MP, e apenas o MP, acusa. Ao juiz, em resumo, cabe analisar se a opinião do MP procede ou não.


A proximidade de Augusto Aras e Jair Bolsonaro, contudo, expôs uma falha do desenho institucional brasileiro. Ao contrário do que acontece na esfera estadual, a decisão do PGR é irrecusável e irrecorrível. As partes ou os juízes - no caso, os ministros do Supremo - não podem pedir que outros subprocuradores da PGR, ou um colegiado deles, como o Conselho Superior do Ministério Público, reavaliem o oferecimento de uma denúncia ou uma promoção de arquivamento. O PGR passa, assim, a exercer um poder pessoal imenso. Com a devidas distinções, é como a prerrogativa de abrir um processo de impeachment contra o presidente da República. Trata-se de uma decisão que cabe apenas e tão somente ao presidente da Câmara. 


Em termos práticos, esse esquema institucional confere a somente duas pessoas o poder de iniciar processos que culminem no afastamento do presidente da República: o presidente da Câmara e o procurador-Geral da República. O presidente da Câmara pode acolher um pedido de impeachment por crime de responsabilidade - um processo político-administrativo. O PGR pode oferecer denúncia por crime comum cometido no exercício e em função do mandato - um processo penal. (Nesse caso, a denúncia ainda precisa ser avalizada pelos deputados; foi o que salvou Michel Temer.)


Hoje, essas duas pessoas são Arthur Lira e Augusto Aras. Ambas não têm inclinação para agir contra Jair Bolsonaro - ou contra seu sucessor, caso ele não seja reeleito. (Aras tem mandato e Lira está bem posicionado para se reeleger presidente da Câmara em 2023.) Prevalece a convicção, entre os ministros do Supremo, que Bolsonaro se tornou "indenunciável", nas palavras de um deles. "Não importa o que presidente faça, Aras não se moverá (contra Bolsonaro)", diz, ecoando uma opinião comum em Brasília.


Para a maioria dos ministros, o caso Covaxin confirma esse compromisso de Aras com o presidente. Os fatos da investigação são relativamente simples. Não estão em dúvida: Bolsonaro foi alertado pelos irmãos Miranda sobre suspeitas de ilegalidades na compra da vacina indiana - e nada fez. Ao deixar de agir conforme determina a lei, comunicando a suspeita à Polícia Federal ou ao ministro da Justiça, cometeu, em tese, o crime de prevaricação.


A Polícia Federal, em seu relatório final, confirmou esses fatos. Mas disse que o presidente não tem a atribuição expressa de comunicar crimes dos quais tenha conhecimento. Aras concordou com a tese um tanto heterodoxa da PF. Argumentou à ministra Rosa Weber, relatora do caso, que o presidente, por previsão legal, nem sequer poderia cometer prevaricação. Ou seja, que ele pode ser alertado de um esquema ilícito e dar de ombros - nada fazer.


O PGR, portanto, opinou, após meses de trabalhos policiais, que o presidente jamais poderia cometer um crime nas circunstâncias descritas desde o começo da investigação, em julho. Consequentemente, nem precisava descer aos fatos do caso para arquivá-lo. Afirmou que a conduta do presidente foi atípica - não configuraria crime, nem em hipótese.


Num ato politicamente forte e juridicamente controverso, que recebeu pouca atenção, Rosa não aceitou o arquivamento. Ela se ateve a uma (discutível) brecha para agir assim. Há precedentes no Supremo para que um ministro possa rejeitar o arquivamento, a opinião do PGR, se esse arquivamento envolver a atipicidade da conduta. Como Aras afirmou que o presidente não poderia cometer um crime, nem sequer em tese, em caso semelhante ao da Covaxin (a tal atipicidade da conduta), a ministra avaliou que a justificativa do PGR não vale. Colide-se com a Constituição e as leis penais.


Rosa tentou antever críticas e disse que não estava violando o poder da PGR nem o sistema acusatório. Assegurou que o Ministério Público segue soberano em sua opinião de acusar ou arquivar. Mas afirmou, em tradução livre de juridiquês, que Aras esculachou. Foi longe demais ao dizer que um presidente não pode cometer crime de prevaricação.


Na semana passada, a ministra pediu ao PGR que reavaliasse os argumentos apresentados. Não sem alguma razão, Aras se sentiu desautorizado. Reclamou com subordinados e aliados. Anteontem (segunda), manteve a posição e recorreu. Pediu à ministra que leve o caso ao plenário do Supremo. Ontem (terça), a Advocacia-Geral da União concordou com a PGR. Por sinal, a atuação da AGU como advogada de defesa do presidente em casos de crime comum, como o da Covaxin, é uma novidade questionável.


Rosa talvez seja a ministra que mais respeita a colegialidade do Supremo. Que mais obedece à opinião comum estabelecida pelos ministros. É possível que ela remeta o caso ao plenário. Se isso acontecer, os ministros serão obrigados a analisar o alcance e os limites, caso existam, das opiniões penais do PGR.


É um julgamento que tem potencial para expor a realidade política da cúpula do Ministério Público Federal, do Palácio do Planalto e do próprio Supremo. Diante da sucessão de arquivamentos promovidos por Aras em favor de Bolsonaro e dos atritos permanentes entre o presidente e a Suprema Corte, trata-se de um debate cujas consequências podem acender 2022 - e ajudar a determinar a estabilidade institucional do país nos próximos anos.

https://obastidor.com.br/justica/o-poder-irrecorrivel-de-rosa-weber-3140

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