Trump usa Musk para detonar bomba atômica contra democracia
Reinaldo Azevedo
Donald Trump, presidente eleito dos EUA, anuncia um novo modelo de gestão: a privatização não de estatais, mas do próprio Estado. Não tardará para que alguém avente a possibilidade de reproduzir o troço por aqui.
Elon Musk, o homem mais rico do mundo, apostou e se deu bem. Jogou muitos milhões de dólares na eleição do republicano — uma ínfima fração do que recebe de financiamento oficial — e terá como galardão o controle de todos os órgãos de regulação que deveriam supervisionar a relação de suas empresas com o governo.
Vamos ver.
3, 2, 1... e surgirão na Terra Brasilis, os "analistas" que cantarão as glórias da — sim, eles chamarão a coisa deste modo — "revolução" que estaria em curso naquele país.
Se notarem, esses valentes já responsabilizam os democratas pela dita "vitória acachapante" do republicano, transformando o "distritão eleitoral" na "ultima ratio" da democracia.
Sei que pode não parecer, leitores, mas a democrata Kamala Harris obteve, até agora — a apuração ainda não terminou —, 48,1% dos votos (72.350.340), contra 50,2% de Trump (75.492.424). A diferença é de pouco mais de 3 milhões de votos (2,1%). Em tempos menos acanalhados, qualquer observador razoável diria que o presidente eleito não recebeu carta branca para fazer o que lhe der na telha.
Mas como? Maioria no Colégio Eleitoral, no Senado, na Câmara, nos condados...
É preciso chamar o resultado de "humilhação histórica" porque assim se desqualifica qualquer crítica que se possa fazer ao biltre lá ou aqui.
Gente que hoje se põe de joelhos diante da "vitória histórica" de Trump advertiu um certo Luiz Inácio Lula da Silva ainda no dia 30 de outubro de 2022 que uma diferença de 1,8 ponto percentual em relação a seu contendor — quase a mesma de Trump em relação Kamala — era um sinal de um país dividido e uma advertência de que não ganhara a licença para atuar sem amarras.
Sim, eu sei, são sistemas distintos. É que me agrada a ideia de, numa democracia, um indivíduo corresponder a um voto. Quando se toma o resultado nos distritos, fica-se com a impressão de que, de fato, os democratas se descolaram de forma vexaminosa do povo americano.
Conversa mole.
Trata-se de mero pretexto para atacar os progressistas, a cultura "woke" e outras generalizações idiotas. E nunca faltam aqueles que falam, como é mesmo, da "América profunda". Os mais de 72 milhões de votos de Kamala devem pertencer à América rasa...
TREMPA REACIONÁRIA
Atentem para os nomes até agora indicados por Trump para ocupar cargos-chave na administração.
Fazê-lo é prerrogativa do cargo, claro! Ocorre que ele governará todo o país, não apenas os seus pouco mais de 75 milhões de eleitores. Não havendo "centrão" por lá nem presidencialismo de coalizão, pode contar com a maioria no Congresso para aprovar projetos de seu interesse.
Ocorre que ele quer mais do que isso.
A exemplo de toda postulação fascista, também a sua prega o renascimento da nação, que teria sido destruída pelos adversários — com o que não concorda a quase metade dos votantes —, e o retorno a uma suposta Idade de Ouro, que teria sido perdida.
O "again" do MAGA está a dizer: "Já fomos grandes certa feita, mas aí vieram esses caras e deixaram tudo horrível". E, pois, é preciso que alguém encarne o papel do "salvador".
Os nomes que até agora vieram a público indicam que o futuro presidente dos EUA não está disposto a reconhecer a existência do contraditório.
Se a democracia compreende, necessariamente, que adversários convivam segundo as disposições institucionais, o líder afascistado exige a conversão.
Daí a enxurrada de extremistas de direita que vão sendo anunciados todos os dias.
No discurso da vitória, Trump falou em "unir a América".
Não vai acontecer.
Seu governo ainda não começou, mas os primeiros passos na formação de sua equipe acenam com a confirmação dos piores temores.
ELON MUSK
Que Elon Musk seria um homem forte no governo, pôde-se perceber já na madrugada de quarta-feira. Foi a personagem que ocupou maior tempo no seu discurso. Havia dúvidas se teria alguma função na administração ou se dedicaria apenas a embargos e desembargos auriculares.
O anúncio desta terça acena com algo inédito e necessariamente ruim.
O sujeito vai chefiar um tal "Departamento de Eficiência Governamental", em companhia do também empresário Vivek Ramaswamy.
Trump anunciou: "Juntos, esses dois americanos extraordinários abrirão o caminho para que minha administração desmonte a burocracia governamental, elimine regulamentações excessivas, corte gastos desnecessários e reestruture agências federais". Ficarão encarregados de "uma reforma de larga escala".
Acontece que Musk tem negócios multibilionários com o governo americano, que passam pelo crivo das agências federais, as mesmas que ele próprio estará encarregado de reestruturar.
No dia 12 de agosto, o dono da X fez em sua rede social uma "live" com o então candidato republicano.
Ali se esboçou a ideia de se criar esse aparelho privado encarregado de governar o governo.
Apontou os gastos públicos excessivos.
Trump concordou com ele e exaltou a sua capacidade de "fazer cortes".
Era uma referência à razia que Musk promoveu na X, eliminando muito especialmente a estrutura para coibir as campanhas de desinformação e de propagação do ódio.
3, 2, 1... e dirá alguém que Musk, afinal, é um grande empresário e sabe tudo sobre eficiência, como se a finalidade de uma empresa e o objetivo de seus controladores fossem comparáveis às atividades de um governo.
Estados organizados, também o americano, têm uma estrutura burocrática estável e conseguem, muitas vezes, controlar as sandices dos governante de turno. Trump se indispôs mais de uma vez com essa burocracia no seu primeiro mandato.
No lance mais estrepitoso — e derradeiro —, queria mobilizar as Forças Armadas contra a eleição de Joe Biden, promovendo mudanças no alto escadão do Pentágono, sonhando com uma virada de mesa.
Recebeu. no dia 11 de novembro de 2020. um pito público de Mark Miley, então chefe do Estado Maior das Forças Armadas, durante a inauguração do Museu do Exército:
"Somos únicos entre os militares. Não fazemos juramento a um rei ou rainha, a um tirano ou a um ditador. Não fazemos juramento a um indivíduo. Não fazemos juramento a um país, a uma tribo ou religião. Fazemos um juramento à Constituição. E cada soldado representado neste museu, cada marinheiro, aviador, fuzileiro naval, guarda costeiro, cada um de nós protegerá e defenderá esse documento, independentemente do custo pessoal."
Miley estava ao lado de Christopher Miller, que havia sido nomeado secretário interino da Defesa dois dias antes, substituindo Mark Esper.
Trump estava furioso com Esper desde junho daquele ano, quando se negou a usar as Forças Armadas para reprimir protestos contra o racismo.
Nota: na campanha eleitoral, ele voltou a falar em usar tropas para coibir manifestações de oposição.
O futuro secretário de Defesa, diga-se, já foi escolhido: trata-se de Pete Hegseth, veterano de guerra, que é hoje apresentador da Fox News.
É um homem dos irmãos Koch, a família de bilionários republicanos.
Hegseth foi diretor-executivo da "Concerned Veterans for America", associação financiada pelos... Koch.
Está em curso a privatização do Estado americano.
A democracia não se limita a um sistema de votação. Também é um conjunto de valores. E está, obviamente, sob ameaça na gloriosa "América".
Ah, sim: Trump disse que o orgão a ser chefiado por Musk é o "projeto Mahattan do nosso tempo".
Refere-se ao programa secreto que resultou nas primeiras armas nucleares da história.
Se é, então certamente há aspectos nesse rolo que ninguém conhece.
Eis aí. Pelo visto, trata-se de uma bomba atõmica contra a democracia americana.
Opinião
Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.