Bolsonaro - Com Malafaia em Londres, Bolsonaro privatiza política externa em nome da fé

 

Entendendo 


* Vinícius Rodrigues Vieira

Que o presidente Jair Bolsonaro (PL) foi ao funeral da Rainha Elizabeth II para fins eleitorais não é novidade alguma. Apenas ninguém contava que ele levaria a tiracolo o pastor Silas Malafaia, um dos maiores entusiastas de sua campanha à reeleição no universo evangélico. Numa ocasião solene Bolsonaro, enfim, deu a prova cabal de que, em seu governo, a política externa brasileira foi privatizada em nome da fé.

O embaixador brasileiro até se disse honrado com a presença de Malafaia. Todavia, seria injustiça dizer que, somente sob Bolsonaro, vimos a captura de uma política de Estado por grupos de interesse. Nos governos petistas, por exemplo, ficou claro que as relações bilaterais com Angola e Peru — para citar dois casos emblemáticos — foram direcionadas conforme os interesses da empreiteira Odebrecht.

Em que pese a corrupção — bastante presente em negócios nos quais empresas possuem interesses simbióticos com aqueles das elites estatais —, tratou-se de algo cujos dividendos para a sociedade eram claros. A exportação de serviços de construção e engenharia rende ganhos inquestionáveis para uma nação que reivindicava o status de potência ascendente.

No Brasil de Bolsonaro, contentamo-nos a ser párias — para usar a expressão do ex-chanceler Ernesto Araújo — e periferia de reacionários que, ao batalhar por uma suposta "eternidade", pretendem fazer a história voltar a tempos medievais. O que ganhamos aliando-nos a governos como o da Polônia para defender supostos valores cristãos e da "família"?

Nada, neca de pitibiriba. Já pastores como Malafaia aumentam seu passe perante seu rebanho, dizendo aos fiéis que são capazes, sim, de converter sua fé em política pública, trazendo o reino de Deus (ou seria dos pastores?) a este plano profano. De fato, conforme já tinha salientado nesta coluna, o problema dos pastores não está em sua fé evangélica, mas em seu patrimonialismo — a tomada do público pelo privado.

A atual administração já tinha colocado nossa diplomacia a serviço de interesses privados de pastores e bispos evangélicos, como na expulsão de religiosos brasileiros da Igreja Universal de Angola, rompida com a matriz brasileira. Também ameaçamos sucumbir aos interesses de pastores ao sinalizar em 2019 que a embaixada do Brasil em Israel seria transferida de Tel Aviv para Jerusalém. À época, aliás, o pastor disse que Bolsonaro teria que ser macho para fazer tal mudança.

A presença de Malafaia em Londres — e, muito provavelmente, na abertura da Assembleia Geral da ONU — eleva a captura da política externa por pastores a outro patamar. Bolsonaro claramente enxerga o Brasil como a última fronteira do tradicionalismo cristão, um território conquistado em nome da fé — não aquela que nos reconecta ao transcendental, mas a que permite que homens e mulheres privatizem o Estado.

Dizem agir em nome de Cristo, mas são apenas vendilhões do templo, tal como Bolsonaro afirma defender a democracia enquanto a solapa constantemente. Se falar inglês, Malafaia poderia se aconselhar com o Rei Charles III, que já deixou claro buscar a proteção das mais diversas religiões de seus reinos muito embora seja o chefe da Igreja da Inglaterra, de orientação protestante.

Malafaia e Bolsonaro talvez ouçam o que sua majestade tem a dizer sobre fé. História outra, porém, é a cruzada carlista a favor do meio ambiente, que inclui projetos no Brasil. À luz do bolsonarismo, cabe perguntar: seria Charles III um comunista infiltrado no trono britânico prestes a abocanhar nossa Amazônia?

Se não fosse expressão da tragédia brasileira, nossa dupla dinâmica em Londres poderia ficar no exterior e seguir carreira no humor ou, alternativamente, poderiam virar espiões que, por serem "imbrocháveis", fariam inveja até mesmo a James Bond. Deve lhes render mais dividendos, porém, esgarçar a fronteira entre o público e o privado, entre a razão e a fé, de modo jamais visto na Casa de Rio Branco.

Deus, se o Senhor é brasileiro, deixe o rei de lado e venha nos salvar. Amém!

* Vinícius Rodrigues Vieira é doutor em relações internacionais por Oxford e leciona na Faap e em cursos MBA da FGV.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL 

https://noticias.uol.com.br/colunas/coluna-entendendo-bolsonaro/2022/09/18/com-malafaia-em-londres-bolsonaro-privatiza-politica-externa-em-nome-da-fe.htm

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