Casa-grande pede divórcio de Bolsonaro
Antonio Carlos Prado
03/09/21 - 09h30
O liberalismo e o capital dão um aviso ao presidente: basta de intervenção estatal, ataques à democracia e manobras golpistas. Parece sina do País: o Leviatã sempre a engolir a proposta liberal.
Não é pouco o que o golpista presidente Jair Bolsonaro conseguiu em cerca de novecentos e oitenta dias de mandato. Em um fato inédito na jornada republicana brasileira, e lá se vão cento e trinta e dois anos de história, Bolsonaro atraiu contra a sua gestão toda a Casa-Grande que abriga as elites dos setores produtivos e de sustentação do País — até o agronegócio, que sempre lhe teceu loas, arrefeceu no apoio. De fato, não é pouca coisa. Há de se esforçar muito para exercer tanto desgoverno, a ponto de lhe virarem as costas empresários, banqueiros, agentes financeiros, operadores de serviços, comércio e lideranças do agronegócio, categorias sempre dispostas a se manterem pragmaticamente alinhadas com todos os governos pela manutenção do status quo — hoje, fazem abaixo-assinado contra o mandatário. Houve um Bolsonaro no palanque, mentindo sobre as suas convicções liberais. Há um Bolsonaro no Planalto, que, desde o primeiro bocejo com a incumbência do mandato, promoveu um Estado intervencionista e foi, dia após dia, tentando solapar o regime democrático – liberalismo não existe sem democracia, democracia não sobrevive sem liberalismo. A Casa-Grande se divorcia agora do presidente, feito um aviso contra os seus reincidentes atos antidemocráticos. Veio o estágio do rompimento devido a tais atos contra o Judiciário e o Legislativo, sugestivos de vocação golpista, e a partir de crescente intervencionismo estatal, a ferir os princípios liberais da liberdade individual, econômica, religiosa e intelectual.
Falou-se em dia após dia… chega-se à semana passada. A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) organizou o manifesto “A Praça é dos Três Poderes”, alusão ao republicano poema de Castro Alves, que diz: “a praça é do povo assim como o céu é do condor”. Tal manifesto, encabeçado pelo presidente da Fiesp, Paulo Skaf, e endossado pela Federação Brasileira dos Bancos (Frebaban), é vago; se sacudido derruba ao chão expletivos por todos os lados; é meramente protocolar. Defende o óbvio do republicanismo proposto por Charles-Louis de Secondat: a necessidade de “harmonia entre os três poderes” diante da escalada das ameaças de ruptura à ordem democrática”.
Com mais de duzentos signatários o texto transitou pela Frebaban, e o governo passou a acusá-la de enrijecê-lo com ataques ao mandatário (isso não ocorreu), tese que ganhou o apoio do ministro da Fazenda, Paulo Guedes. O dramaturgo Terêncio, desde o século II a.C, ensina que, também em matéria de economia, “nada que é humano me é estranho” (reflexão que ganhou cores filosóficas com William Shakespeare). Há quem diga que a frase encarnou em Guedes,… mas isso é maledicência, voltemos aos fatos… Bolsonaro e Guedes já guardavam a intenção de fazerem a Caixa e o Banco do Brasil se excluírem da Febraban. Veio o momento. A interferência em tais bancos públicos será investigada pelo TCU. Quanto ao Terêncio do século 21, será ele chamado pela Câmara dos Deputados para explicar se na Escola de Chicago, em aulas do doutor Milton Friedman, um dos pais do liberalismo, defendia-se a ingerência política em instituições financeiras.
Skaf, no estilo Skaf, negociou isoladamente com o presidente da Câmara, Arthur Lira, no estilo Lira. Acordaram de divulgar o manifesto somente após o Sete de Setembro. O acordão se deu sem que Skaf tenha consultado a Frebraban ou as mais de duzentas entidades que assinam “A Praça é dos Três Poderes”. Essa autonomia que Skaf deu a si mesmo fez a coisa pegar fogo. O presidente da Febraban, Isaac Sidney, declarou que a instituição manteria o seu nome no manifesto. E vê-se, assim, o máximo da sandice do governo federal: achar que no capitalismo dá para governar sem apoio do capital. A tonalidade em bemol saltou para sustenido. Nunca se vira tamanho divórcio litigioso do PIB com o governo — sequer em 1964, quando a balbúrdia da gestão do então presidente João Goulart empurrava o País ao socialismo. Naquela época, a maioria dos empresários queria Jango fora do poder, mas havia lideranças empresariais que defendiam a sua manutenção em nome da democracia. Bolsonaro conseguiu reunir, na Casa-Grande, mais adversários que o próprio presidente estancieiro. De volta ao presente, banqueiros e agentes financeiros falaram, preservando seus nomes. Damos-lhes voz: “o mercado financeiro se divorciou de Bolsonaro”. Outro: “não há mais relação”. Fala um agente financeiro: “o presidente vai radicalizar. Fará de tudo para derrubar o regime democrático”. Na quinta-feira 2, Bolsonaro contou com uma aliada: a Federação das Indústrias de Minas Gerais (Fiemg) disparou um manifesto criticando o STF e em apoio a sites que espalham fake news. Houve troco: duzentos poderosos empresários mineiros lançaram um documento condenando a Fiemg.
Retornando ao cenário anterior e mais amplo, a lambança de Skaf e Lira fez com que sete entidades representativas do agronegócio se pronunciassem: “Em uma palavra, é de liberdade que precisamos para empreender, gerar e compartilhar riqueza, para contratar e comercializar no Brasil e no exterior”. O agronegócio passou a falar em desemprego e fome. Falou em povo. Na verdade, todos os setores produtivos e de sustentação, em uma comparação bem livre, hoje se assemelham a uma espécie de Terceiro Estado da Revolução Francesa, a um “renascer da burguesia” liderando os cuidados com os interesses de brasileiros famintos. Bolsonaro é o Segundo Estado, antiga avara nobreza dos tempos do absolutismo a esmagar a sociedade. O capitão quer a ditadura? Deveria saber que o ditatorial Estado Novo de Getúlio Vargas só se viabilizou em 1937 porque aglutinou o apoio do capital agrário, industrial e comercial. E mesmo em 1930, quando perdeu a eleição realizada em um sábado de carnaval (o povo preferiu ver o desfile da “Deixa Falar”, primeira escola de samba, criada por Ismael silva), Getúlio promoveu e ganhou o poder pela revolução, porque a incipiente industrialização assim precisava. Triunfou com a Aliança Liberal. Sete anos depois, esse liberalismo foi engolido pelo Leviatã — aí tudo começou dar errado, parece sina nacional. Ou seja, sem a parceria dos mais diversos setores da economia, das finanças, das empresas, do comércio, dos serviços, do agronegócio — sem o capital, enfim — não se governa. E Estado abelhudo e agigantado atrapalha.
Em Goiânia, no último final de semana, Bolsonaro, achando-se Getúlio Vargas, dramatizou: “em meu futuro só cabem cadeia, morte ou vitória final”. Vamos analisar: a última hipótese já dançou. A morte, isso ninguém quer não, todos optam por Bolsonaro vivo e responsabilizado judicialmente por genocídio. Quanto à cadeia, aí é só trocar. “O céu é do condor”, de Castro Alves, vira “a Papuda é de Bolsonaro”. E o Brasil prosperará com um liberalismo de verdade..
https://istoe.com.br/casa-grande-pede-divorcio-de-bolsonaro/