sexta-feira, 12 de setembro de 2025

Aqui jaz o golpe

 

Aqui jaz o golpe 

STF condena Bolsonaro e encerra trajetória de idolatria à ditadura, desrespeito à vida na pandemia e obsessão por repetir 1964
12/09/2025 | 06h42 

Por Cleber Lourenço

O golpe morreu ontem, junto com o personagem político que sobreviveu por mais de três décadas no Congresso, na televisão e nas redes sociais. 

Sua morte foi decretada em números: 27 anos e 3 meses de prisão, fixados pela 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal. Uma pena que simboliza não apenas o fim de um projeto pessoal, mas o fechamento de uma era em que a democracia brasileira tolerou a idolatria a golpistas e a defesa aberta do arbítrio. O que se encerra aqui não é apenas um ciclo político, mas uma narrativa construída em torno da violência como método e do autoritarismo como ideal.

Desde o início, Bolsonaro deixou claro quem era. Em 1999, pregava guerra civil e a morte de “uns 30 mil”, começando por Fernando Henrique Cardoso. Em 2016, exaltou Carlos Alberto Brilhante Ustra, reconhecido como torturador, em pleno voto do impeachment de Dilma Rousseff. Como presidente, ordenou que os quartéis comemorassem o 31 de março de 1964, tratando o golpe como ato de libertação. Não parou aí: ao longo de sua carreira, homenageou ditadores estrangeiros, elogiou Pinochet no Chile e reverenciou Stroessner no Paraguai, sempre buscando no autoritarismo alheio exemplos a serem seguidos em solo brasileiro. A tentativa de golpe de 2023 foi apenas o coroamento de um percurso que sempre apontou para a ruptura. Era o passo final de um projeto que nunca acreditou em convivência democrática, mas apenas em vitória total e submissão do adversário.

Esse histórico de idolatria a golpistas não se resume às citações públicas. Bolsonaro cultivou, ao longo dos anos, um círculo político e militar disposto a reverenciar o autoritarismo e reescrever a história do país a partir da lógica da força. Nos quartéis, em discursos, em entrevistas e até em solenidades oficiais, repetiu que 1964 havia sido um “movimento” necessário, uma “salvação”. No exterior, buscava exemplos para legitimar seu discurso: louvava líderes que fecharam congressos, dissolveram cortes constitucionais e perseguiram opositores. Esse comportamento não era um deslize retórico, mas parte central de sua identidade política.

Mas o obituário político de Bolsonaro não se restringe ao golpismo. Ele carrega também a marca indelével da pandemia. Por ação e omissão, espalhou negacionismo, sabotou vacinas, incentivou aglomerações e promoveu medicamentos sem eficácia. Mais de 700 mil brasileiros morreram, e o chefe de Estado que deveria proteger vidas escolheu zombar de quem perdia o ar, imitando a agonia de pacientes em uma de suas transmissões.

É preciso recordar que, em momentos cruciais, recusou ofertas de vacinas, ironizou o uso de máscaras e atacou governadores que tentavam adotar medidas de restrição. Esse capítulo não foi objeto direto da decisão do STF, mas está impresso na percepção de justiça tardia: para famílias que enterraram seus entes queridos sem despedida, a condenação tem o sabor de resposta a um crime moral contra o país. Cada número da estatística é um vazio que a sentença não preenche, mas ajuda a nomear.

Na porta da casa de Bolsonaro, polícia do DF faz guarda sem uniforme e sem armas à mostra golpe

Jair Bolsonaro

Esse desfecho não teria sido adiado por tanto tempo sem a atuação de Augusto Aras. O procurador-geral blindou Bolsonaro, engavetou representações e transformou o Ministério Público em muralha de proteção. O escudo foi eficiente por um tempo, sustentando a sensação de impunidade e permitindo que o presidente testasse os limites da democracia sem enfrentar as consequências. O silêncio da PGR foi cúmplice, convertendo o cargo de guardião da lei em aliado político. Mas não resistiu ao peso da história. A Justiça encontrou o caminho e, mesmo com obstáculos, chegou ao julgamento que parecia improvável.

O obituário político de Bolsonaro é também o retrato de um Brasil que demorou a enfrentar seus próprios fantasmas. Durante anos, a defesa da ditadura e a exaltação de torturadores foram tratadas como folclore de um deputado do baixo clero. A mídia repetia falas como se fossem excentricidades inofensivas, e o sistema político tolerava sua presença como figura caricata. Até que, em 2018, o folclore virou poder, e o país se viu entregue a um governante que não apenas repetia, mas aplicava o que dizia. Em 2023, a democracia foi atacada nas ruas e nos palácios. A pena de 27 anos não devolve os mortos da pandemia, não apaga o trauma do 8 de janeiro nem repara a corrosão institucional de quatro anos de governo. Mas ergue um marco: a resposta da democracia a quem tentou destruí-la.

A sentença também serve de alerta. Não basta punir o golpista já derrotado. É preciso compreender como um discurso de ódio e de saudade da ditadura encontrou espaço em plena República de 1988. Bolsonaro cresceu nas brechas de uma transição democrática incompleta, em que militares nunca foram responsabilizados por crimes da ditadura, e onde a memória oficial preferiu o silêncio à verdade. Seu obituário político revela os custos dessa omissão histórica: a volta, em pleno século XXI, de um projeto que flertava com o autoritarismo como solução.

No fim, resta o epitáfio inevitável: aqui jaz Jair Bolsonaro, o político que sempre quis dar um golpe, que idolatrava ditadores no Brasil e mundo afora, que zombou das vítimas de uma pandemia devastadora, que foi protegido por aliados poderosos — e que agora será lembrado como o ex-presidente condenado por tentar esmagar a democracia que lhe deu voz e poder. Sua morte política é também uma lição amarga: quando a sociedade naturaliza o autoritarismo, ela prepara o terreno para a tragédia. 


A sentença de hoje, ao menos, mostra que a democracia ainda tem força para escrever o último capítulo. 

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